28 outubro, 2021 - Artigos A compensação na recuperação judicial

Por Mariana Negri e Pâmela Silveira Leite

Análise envolve desafiadora tarefa de resolver um conflito de interesses, o interesse social vs. interesse individual de um credor

A aplicabilidade da compensação na recuperação judicial é um tema polêmico e controvertido, que merece atenção diante da sua grande utilidade prática.

A compensação é uma causa extintiva de obrigações, prevista no art. 368 do Código Civil, pela qual duas pessoas, que figuram reciprocamente como credoras e devedoras, têm as suas obrigações extintas até onde se compensarem.

Como forma de garantir o adimplemento, esse “encontro de contas” elimina a necessidade de se realizar pagamentos recíprocos, “dispensáveis”, nas palavras de Orlando Gomes. Com efeito, “é mais simples e econômico evitar um pagamento dúplice, quando entre as mesmas pessoas existem diversas relações de débito e crédito. Por isso essas relações recíprocas devem extinguir-se, na medida dos valores que podem ser compensados”.

À luz dos artigos 368 e 369 do Código Civil, é possível interpretar que a compensação se opera de forma automática, como ocorre, nesse aspecto, no Direito Francês. Ainda, a compensação pode ser legal, que se subordina a requisitos legais, ou voluntária/convencional, em que as partes podem flexibilizar os requisitos legais para autorizar a extinção de obrigações recíprocas.

São essas as premissas que devem nortear a análise da aplicabilidade da compensação na recuperação judicial. O tema, porém, é objeto de controvérsias, na medida em que o processo de recuperação se submete a um regime jurídico especial, regido por lei própria (Lei n. 11.101/2005 – LFR), que tem como pilares os princípios da preservação da empresa (art. 47, da LFR) e do tratamento paritário dos credores (par conditio creditorum).

No anseio de preservar esses princípios, comumente se questiona sobre a compensação de débitos e créditos recíprocos, principalmente diante da possibilidade indesejada de ocorrer favorecimento pessoal a um determinado credor.

Além disso, muito se debate sobre a compatibilização dos dispositivos que tratam da compensação no Código Civil e na LFR. Nesse ponto, há que se destacar que a LFR é omissa acerca da possibilidade de se efetivar a compensação em caso de recuperação judicial, já que apenas disciplina a compensação na falência, no artigo 122.

Nesse cenário de incertezas, torna-se imprescindível a análise da jurisprudência sobre a possibilidade de aplicação da compensação na recuperação judicial.

O Tribunal de Justiça de São Paulo já manifestou entendimentos sobre o tema nos seguintes sentidos: (i) admitindo a compensação, ao fundamento principal de que sua aplicação é automática; se opera de pleno direito, independentemente de decisão judicial, com fundamento no Código Civil e (ii) rejeitando a compensação, por implicar violação ao princípio do par conditio creditorum e ao artigo 49, da LFR.

Nesse último caso, verifica-se um certo controle por parte do Poder Judiciário na aplicação da compensação na recuperação judicial, que acaba por avaliar as particularidades do caso concreto, principalmente: a data de distribuição do pedido de recuperação judicial; a data dos fatos geradores das obrigações compensáveis e se foram preenchidos os requisitos da compensação (legal ou convencional).

As situações enfrentadas pelo Poder Judiciário são diversas.

Na hipótese de os fatos geradores das obrigações (débito e crédito) e a compensação se operaram antes do pedido de recuperação judicial, a jurisprudência tem entendido que a compensação ocorreu de forma automática e que as obrigações compensáveis já estavam extintas no momento do pedido de recuperação judicial, por aplicação dos artigos 368 e 369 do Código Civil, não sendo permitida a restituição de valores.

No entanto, quando os fatos geradores das obrigações ocorrem antes do pedido de recuperação, mas o preenchimento dos requisitos da compensação se efetivam depois, a jurisprudência tem considerado que a compensação não é possível, porque prejudica interesse de terceiros – a coletividade dos credores (par conditio creditorum) –, o que é vedado pelo artigo 380, do Código Civil.

Já quando os fatos geradores das obrigações e o preenchimento dos requisitos da compensação ocorrem depois do pedido de recuperação judicial, tem-se que o crédito não se submete à recuperação judicial, por força do art. 49, da LFR, e, como consequência, tem sido reconhecido pela jurisprudência que a compensação se opera automaticamente. Contudo, essa posição também pode sofrer influência do artigo 66, da LFR, que veda a possibilidade de alienação ou oneração dos ativos permanentes da empresa em recuperação, no intuito de preservar a empresa à luz do art. 47 da LFR.

Há que se observar, ainda, que uma das grandes razões para o indeferimento da compensação é o não preenchimento dos requisitos previstos no art. 369, do Código Civil, principalmente quando as dívidas não forem líquidas e certas e quando as dívidas recíprocas apresentam naturezas distintas.

Por fim, como bem observado pelo desembargador Alexandre Lazarini, da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, a compensação somente será lícita se ambos os créditos forem anteriores ao pedido de recuperação ou se ambos forem posteriores ao pedido, sob pena de configuração de fraude a credores.

Como se vê, a análise da possibilidade de compensação na recuperação judicial envolve a desafiadora tarefa de resolver um conflito de interesses – interesse social x interesse individual de um credor – e, para que se atinja o objetivo de proferir decisões adequadas em um processo que importa em renegociação de dívidas, é imprescindível a avaliação do contexto fático particular de cada caso concreto.

Leia o artigo no Elas no JOTA

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