Por Arnoldo Wald e Samantha Mendes Longo
Teremos positivadas regras sobre a insolvência transnacional, que merece cada vez mais atenção diante da globalização
A sociedade aguarda ansiosa a manifestação da Presidência da República sobre o texto recentemente aprovado no Senado Federal, que modifica a Lei de Falências e Recuperação Judicial.
Com a pandemia, o número de falências e recuperações aumentou enormemente no mundo. Simultaneamente, cresceu o perigo ambiental e os tribunais se viram ameaçados de um verdadeiro “tsunami” de novos pleitos decorrentes das insolvências, alegando a imprevisão e a força maior.
Assim, em virtude da pandemia do coronoravírus, teríamos a paralisia do Poder Judiciário, se os tribunais e o Conselho de Justiça não tivessem tomado oportunamente algumas importantes medidas. Faltava a iniciativa do legislativo que acaba de nos oferecer um verdadeiro Código.
Numerosos setores de atividades foram mais atingidos, parcial ou totalmente, do que outros, com impontualidade e insolvência, numa escala jamais vista no passado, sem que se soubesse quanto duraria a crise nem como e quando as empresas conseguiriam pagar os seus débitos e até se, em determinado momento, poderiam solve-los.
Dezenas de livros e centenas de artigos passaram a tratar do assunto enquanto surgiam novas legislações de emergência, tanto no exterior como no país, reconhecendo uma espécie de Estado de sítio econômico decorrente dos problemas sanitários e da depressão econômica consequente.
Já havia uma tendência, nos últimos dez anos, diante da revolução tecnológica, de rever o direito falimentar e de integra-lo mais intensamente no direito comercial, como meio de garantir a sobrevivência das empresas que estavam em condições adequadas de sustentabilidade antes da crise, mas que sofreram os problemas decorrentes da globalização e da revolução tecnológica.
Tramitava, desde 2005, projeto de lei que trazia alterações relevantes para o sistema da insolvência brasileiro e que acaba de ser aprovado pelo Congresso Nacional.
Ninguém duvida que não há lei perfeita, que se adeque magistralmente a todas as situações do cotidiano e que agrade a totalidade dos interessados. Com essa lei, não é diferente, mas devemos ressaltar as várias inovações importantes que ela traz.
Trata-se de um verdadeiro Código completo e detalhado com mais de 200 artigos, no qual o legislador não teve medo de inovar, fugindo, assim, a um certo misoneísmo, que dominava o mesmo direito. Preocupou-se com as questões práticas e inspirou-se no direito comparado, procurando um justo equilíbrio nas soluções aos conflitos normais entre devedor e credores.
Pela primeira vez, teremos positivadas regras sobre a insolvência transnacional, que merece cada vez mais atenção diante da globalização, sobre o fresh start, o rápido recomeço às empresas falidas, e sobre a entrada do dinheiro novo no caixa das empresas, decorrente de empréstimos que têm preferências de pagamento, fundamental para sua recuperação.
A nova lei inova ao prever o uso da mediação e conciliação não apenas durante o processo de recuperação empresarial, mas também na fase pré-processual, tentando evitar a demanda e fomentando o devedor e os credores a serem mais protagonistas na reestruturação. O estímulo ao diálogo também aparece quando se reduz o quórum de aprovação do plano de recuperação extrajudicial, criando um modelo ainda pouco utilizado e que merece ser amplamente desenvolvido. As condições na negociação dos créditos inscritos em dívida pública também ficam mais vantajosas aos devedores.
A recuperação, sem ser uma solução milagrosa para todos os casos, pode, quando bem orientada, constituir o caminho normal, embora árduo, para garantir, numa fase de crise, a manutenção ou a sobrevida e o reerguimento das empresas em dificuldades e eventualmente a sua reorganização mediante medidas sérias, eficientes e éticas.
Ela não é mais um negócio de interesse exclusivo do dono da empresa, como quando se entendia que ele funcionava como verdadeiro proprietário, com poderes amplos ou até ilimitados. A empresa exerce hoje uma função social, em cuja gestão deve ser auxiliada pelo Ministério Público, pelo Juiz e pelos administradores judiciais, pelas demais autoridades e até pelo recuperando e pelos titulares de créditos e eventuais finanaciadores, que passam a ter um papel ativo, deixando de ser meros acompanhantes e fiscais do devedor.
A empresa deve respeitar os interesses dos acionistas não controladores e dos empregados, dos fornecedores, dos clientes e dos eventuais investidores, que podem e devem participar de uma verdadeira parceria para fortalecê-la, independentemente dos interesses específicos do controlador.
A parceria é um dos importantes ingredientes do capitalismo, renovado com governança corporativa (Environmental, social and corporate governance – ESG), que tentamos construir no mundo pós pandemia. Esperamos que a nova legislação possa contribuir para esse importante e necessário processo.
Artigo publicado no Valor Econômico.