19 January, 2021 - Articles A Lei da Pandemia, o(a) usucapião extrajudicial e suas modalidades

Por André Abelha

Publicado na revista do

A Lei da Pandemia, o(a)1 usucapião extrajudicial e suas modalidades

1. Introdução

O reconhecimento extrajudicial de usucapião, surgido com o Código de Processo Civil de 2015, ainda não completou cinco anos de vigência, mas parece ter sido há um século. Em pouco tempo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as Corregedorias-Gerais de Justiça, a jurisprudência e, principalmente, os cartórios, avançaram tremendamente no entendimento e aplicação desse procedimento tão relevante, evitando uma quantidade colossal de demandas no Judiciário e trazendo benefícios econômicos e sociais para o Brasil.

Naturalmente, a usucapião extrajudicial não modificou as regras de direito material. O que se alterou foi o procedimento, regulado pelo art. 216-A da Lei 6.015/73, pelo Provimento 65/2017 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e complementado pelas Normas Extrajudiciais (ou Consolidação Normativa) de cada Unidade Federativa. Enfim, o legislador nos ofereceu uma nova trilha para se regularizar, via usucapião, a propriedade imobiliária, com o manejo das mesmas hipóteses já previstas na legislação.

Embora a Lei 6.015/73 e o Provimento 65/CNJ sejam normas federais, aplicáveis a todo o Brasil, é natural que haja distinções, por diversas razões: (i) cartórios de diferentes Unidades da Federal subordinam-se a distintas Normas Extrajudiciais, que podem trazer pequenas diferenças nas regras; (ii) é impossível eliminar certa dose de subjetividade na interpretação das normas legais (e seus conceitos jurídicos indeterminados), dos documentos e dos fatos que chegam ao crivo do oficial, e por isso, é esperado que haja divergência de entendimentos; (iii) pode haver cartórios cuja circunscrição imobiliária abranja áreas problemáticas (como milícia, tráfico ou grilagem), que exigem rigor e prudência ainda maiores do oficial registrador na análise do pedido. Tanto que a própria Lei 6.015/73 (art. 216-A, par. 5º) e o Provimento 65/CNJ (art. 17) estabelecem que “para a elucidação de quaisquer dúvidas, imprecisões ou incertezas, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis ou por escrevente habilitado”.

2. Requisitos comuns

Todas as modalidades exigem, em comum, que o requerente tenha posse ad usucapionem, assim considerada aquela que seja: (i) plena3; (ii) sem oposição, habitualmente chamada de “mansa e pacífica”; (iii) ininterrupta, isto é, sem intervalo, permitidas a acessão e a sucessão possessórias4; (iv) com ânimo de dono, ou animus domini.

O prazo mínimo de exercício da posse varia entre 2 e 15 anos, a depender da modalidade. Nesse ponto, frise-se que a Lei nº 14.010/2020, que instituiu o Regime Transitório e Emergencial das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia de Covid-19, no artigo 10 trouxe uma regra de suspensão dos prazos de usucapião entre os dias 12 de junho e 30 de outubro de 2020, conforme se vê da imagem a seguir:

Entretanto, é importante frisar que o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.720.288 (julgado em 26/05/2020, com base em precedentes), entendeu ser “plenamente possível o reconhecimento da prescrição aquisitiva quando o prazo exigido por lei se exauriu no curso da ação de usucapião”. Isto significa, estranhamente, que o autor, na data de ajuizamento da ação, não precisa ter cumprido o requisito temporal, que pode ser alcançado no curso do processo. Se você concorda com essa tese, na prática a Lei do RJET não fará diferença.

3. Modalidades

Quanto aos tipos de usucapião, temos, em breve resumo, sete modalidades. Lembre-se que a todas elas se aplicam os requisitos básicos acima tratados:

Extraordinário (Código Civil, art. 1.238): prazo regular de 15 anos, sem requisitos adicionais. E prazo reduzido de 10 anos, se o requerente provar que utiliza o imóvel para sua moradia ou que nele realizou obras ou serviços produtivos. Pode ter como objeto imóvel urbano ou rural.

Ordinário (Código Civil, art. 1.242): tem como requisitos adicionais o justo título, que pode ser inclusive uma promessa de compra e venda (REsp 941.464) e a boa-fé (quando o possuidor ignora o vício ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa (CC, art. 1.201), que é legalmente presumida em razão do justo título (isto é, cabe à outra parte provar a má-fé). O prazo regular é de 10 anos. Sublinhe-se, contudo, que o próprio art. 1.242, em seu parágrafo único, prevê um prazo reduzido de 5 anos, em caso de aquisição onerosa cancelada posteriormente (usucapião tabular), de uso para fins de moradia ou realização de investimentos sociais e econômicos relevantes. Também pode ter como objeto imóvel urbano ou rural.

Especial (Constituição Federal, art. 183; Código Civil, art. 1.240, e Estatuto da Cidade, art. 9º). Aqui, os requisitos adicionais são: (i) único imóvel do requerente; (ii) imóvel urbano (apartamento, casa, terreno) com área de no máximo 250m²; e (ii) uso para fins de moradia. Aplicável somente a imóveis urbanos.

Rural (Constituição Federal, art. 191; Lei 6.969/1, art. 1º). Além dos requisitos básicos, o requerente dessa modalidade, também conhecida como “pro labore”, precisa demonstrar que o imóvel rural é produtivo e utilizado para sua moradia, e que não possui outro imóvel. O prazo é de 5 anos. Finalmente, grandes propriedades não se sujeitam a tal modalidade. A Constituição limita a área a 50 hectares (500.000m²), medida que prevalece sobre aquela prevista originalmente na Lei de 1981 (25 hectares).

Indígena (Lei 6.001/73, art. 33). O índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por 10 anos consecutivos, trecho de terra inferior a 50 hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena. A própria Lei, com prudência, explicita que tal modalidade não se aplica: (i) às terras do domínio da União ocupadas por grupos tribais; (ii) às áreas reservadas previstas no art. 265; nem (iii) às terras de propriedade coletiva de grupo tribal.

Pro-família (Código Civil, art. 1.240-A): Se um cônjuge ou companheiro abandonar o lar, aquele que foi abandonado terá direito à usucapião familiar se: (i) exercer, por 2 anos e com exclusividade, a posse direta sobre o imóvel que era e continuou sendo utilizado para a moradia sua ou de sua família; (ii) o imóvel for urbano e tiver até 250m²; (iii) o bem pertencer aos dois ex-cônjuges; e (iv) o requerente não for titular de outro imóvel urbano ou rural. Há quem entenda que essa modalidade de usucapião somente poderá ser pleiteada extrajudicialmente se houver prévio reconhecimento do abandono pelo Poder Judiciário. Todavia, “abandono do lar”, “uso residencial”, “índio”, “propriedade produtiva”, “serviços produtivos”, “investimentos relevantes” são conceitos jurídicos indeterminados, que requerem qualificação, e negar tal possibilidade ao oficial inviabilizaria a tramitação extrajudicial de quase todas as modalidades de usucapião. Então, o abandono deve ser demonstrado pelo requerente e avaliado pelo oficial. O cônjuge que deixou o lar deve ser notificado, e se impugnar o pedido, negando o abandono ou outro requisito, o registrador tentará a conciliação ou mediação entre as partes, e não sendo possível, lavrará relatório circunstanciado de todo o procedimento e o entregará ao requerente, acompanhado dos autos, mediante recibo, e o requerente poderá ajuizar a ação de usucapião perante o juízo competente, conforme art. 18 do Provimento 65/CNJ. Tal regra se aplica a todas as hipóteses de usucapião.

Coletivo (Estatuto da Cidade, art. 10): Os núcleos urbanos informais existentes sem oposição há mais de cinco anos e cuja área total dividida pelo número de possuidores seja inferior a 250m² por possuidor são suscetíveis de serem usucapidos coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. O reconhecimento da usucapião importa a criação de um condomínio voluntário onde todos os possuidores têm a mesma fração ideal, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas. O parágrafo 3º do art. 10 do Estatuto da Cidade afasta, neste condomínio, o direito potestativo à sua extinção, e o art. 12 atribui legitimidade ativa às seguintes pessoas: (i) o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente; (ii) os possuidores, em estado de composse; e (iii) como substituto processual, a associação de moradores da comunidade, regularmente constituída, com personalidade jurídica, desde que explicitamente autorizada pelos representados. A ideia do usucapião coletivo é altamente elogiável e socialmente relevante. Na prática, contudo, o cumprimento dos requisitos, especialmente a definição dos possuidores e suas áreas, é um desafio gigantesco, que geralmente inviabiliza o término dos processos judiciais, e torna o procedimento em cartório extremamente difícil, embora, frise-se, não haja impedimento legal para a via cartorária.

4. Documentos essenciais

A Lei 6.015/73 (art. 216-A) e o Provimento 65 CNJ (art. 4º) indicam os documentos a serem apresentados pelo requerente no início do procedimento extrajudicial de reconhecimento de usucapião. São eles:

I – ata notarial com a qualificação, endereço eletrônico, domicílio e residência do requerente e respectivo cônjuge ou companheiro, se houver, e do titular do imóvel lançado na matrícula objeto da usucapião que ateste: (a) a descrição do imóvel6 e suas características, tais como a existência de edificação, benfeitoria ou outra acessão; (b) o tempo alegado e as características da posse do requerente e de seus antecessores; (c) a forma de aquisição da posse; (d) a modalidade de usucapião pretendida e sua base jurídica; (e) o número de imóveis atingidos pela pretensão aquisitiva e a localização: se estão situados em uma ou em mais circunscrições; (f) o valor do imóvel; e (g) outras informações que o tabelião de notas considere necessárias à instrução do procedimento, tais como depoimentos de testemunhas ou partes confrontantes.

A ata notarial deve ser lavrada pelo tabelião de notas do município em que estiver localizado o imóvel usucapiendo ou a maior parte dele (Provimento 65/CNJ, art. 5º).

Segundo o art. 384 do Código de Processo Civil, “a existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião”. A qualificação do fato (posse ad usucapionem e presença dos demais requisitos) cabe ao oficial registrador. Contudo, mesmo que ao tabelião caiba apenas atestar determinado fato, é impossível fazê-lo sem um juízo mínimo de valor. Em outras palavras, a análise da situação jurídica cabe ao registrador, a partir dos fatos atestados pelo tabelião e de outros documentos. A ata notarial, portanto, não deve atestar que fulano está na posse do imóvel há mais de 10 anos, por exemplo. Mas pode trazer depoimentos de pessoas, fatos observados pelo tabelião, impressões obtidas na vistoria, e outros elementos que podem auxiliar, e muito, o registrador na análise do pedido. Além disso, embora não sejam obrigatórias, as fotos conferem maior clareza à ata, e por isso sua farta utilização é sempre recomendável.

A oitiva prévia dos confrontantes na ata notarial é facultativa, mas, evidentemente, seu depoimento pode dar maior conforto ao oficial na análise do pedido.

II – planta e memorial descritivo assinados: (a) por profissional legalmente habilitado e com prova da Anotação da Responsabilidade Técnica – ART ou do Registro de Responsabilidade Técnica – RTT no respectivo conselho de fiscalização profissional; e (b) pelos titulares de direitos constantes da matrícula dos imóveis usucapiendo e confinantes; e (c) pelos ocupantes a qualquer título.

Em se tratando de unidade imobiliária em condomínio edilício ou lote em loteamento regularmente registrado, a planta e o memorial descritivo são dispensáveis, bastando que o requerimento faça menção à descrição constante da respectiva matrícula (Art. 4º, § 5º do Provimento 65/CNJ).

A planta e o memorial, quando obrigatórios, devem indicar os “registros tabulares do imóvel usucapiendo e dos imóveis confinantes, ainda que não tenham matrículas próprias por estarem inseridos em área maior”, com “pontos de amarração com imóveis matriculados e vias oficiais, de modo a permitir a precisa localização do imóvel usucapiendo no solo” (TJSP, Conselho Superior de Magistratura, Apelação Cível 1002288-59.2018.8.26.0587). E a ata notarial sempre será obrigatória (TJSP, Conselho Superior de Magistratura, Apelação Cível 1002887-04.2018.8.26.0100). Frise-se também que o mesmo órgão do TJSP tem precedente considerando que a prévia averbação de construção não é requisito para o reconhecimento da usucapião, podendo ocorrer posteriormente (Apelação Cível 1002214-84.2017.8.26.0281).

Se a vaga for uma unidade autônoma, com matrícula própria e fração ideal, ela pode ser usucapida por qualquer condômino. A usucapião por estranhos será discutível, tendo em vista o disposto no art. 1.331, § 1º, do Código Civil, que veda a “alienação a pessoas estranhas ao condomínio, salvo autorização expressa na convenção de condomínio”. O Conselho Superior de Magistratura do TJSP tem precedente favorável de 2018 (Apelação Cível 1040381-61.2017.8.26.0576).

Ressalte-se, nesse ponto, o Tema 815, proveniente do Recurso Extraordinário 422.349 do Supremo Tribunal Federal, julgado com Repercussão Geral, segundo o qual “preenchidos os requisitos do art. 183 da Constituição Federal, o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser obstado por legislação infraconstitucional que estabeleça módulos urbanos na respectiva área em que situado o imóvel (dimensão do lote)”.

III – documentos da posse, que demonstrem sua origem, continuidade, cadeia possessória e tempo de duração.

IV – certidões atualizadas (30 dias) dos distribuidores da Justiça Estadual e da Justiça Federal do local em que se encontra o imóvel, demonstrando a inexistência de ações que caracterizem oposição à posse do imóvel, em nome das seguintes pessoas: (a) requerente e seu cônjuge ou companheiro, se houver; (b) proprietário do imóvel usucapiendo e seu cônjuge ou companheiro, se houver; (c) todos os demais possuidores e seus cônjuges ou companheiros, se houver, em caso de sucessão de posse, que é somada à do requerente para completar o período aquisitivo da usucapião;

V – descrição georreferenciada nas hipóteses previstas na Lei n. 10.267, de 28 de agosto de 2001, e nos decretos regulamentadores (se a usucapião implicar desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais);

VI – procuração, pública ou particular, com poderes especiais e com firma reconhecida, por semelhança ou autenticidade, outorgada ao advogado pelo requerente e por seu cônjuge ou companheiro; ou então, em caso de defensor público, declaração que lhe outorgue a capacidade postulatória;

VIII – certidão expedida pelo órgão competente que demonstre a natureza urbana ou rural do imóvel usucapiendo7, expedida até 30 dias antes do requerimento.

IX – comprovação dos requisitos específicos de cada modalidade de usucapião que não tenham sido demonstrados pelos documentos anteriores.

Em se tratando de imóvel foreiro à União, é necessário juntar a certidão emitida pela Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União (SPU), que pode ser obtida online em www.patrimoniodetodos.gov.br informando-se o RIP do imóvel. Atenção: confira se o regime é de aforamento ou ocupação. Sendo aforamento, o correto é pedir a usucapião do domínio útil. Na hipótese de ocupação, a situação é bastante controversa: em princípio não há direito a usucapir “ocupação”, por não ser ela um direito real, e sim uma situação possessória em caráter precário8, mas há Normas Extrajudiciais, como a de PE, pelas quais “quando se tratar de terreno de marinha matriculado, a usucapião manterá o regime jurídico de aforamento ou ocupação, conforme já indicado no título anterior ou na certidão da Secretaria de Patrimônio da União” (art. 1.354-D, §2º, II).

5. Notificações

Como se sabe, a lei prevê a notificação do proprietário, dos confinantes, da União, Estado e Município (ou Distrito Federal), e ainda, de eventuais interessados, por meio de edital.

Entretanto, se o imóvel usucapiendo for matriculado com descrição precisa e houver perfeita identidade entre a descrição tabular e a área objeto do requerimento da usucapião extrajudicial, fica dispensada a intimação dos confrontantes, devendo o registro da aquisição originária ser realizado na matrícula existente (Art. 10, §10, do Provimento 65/CNJ). E mesmo sendo facultativa, eventual manifestação dos confrontantes, com assinatura na planta ou depoimento registrado em ata notarial, poderá dar maior conforto ao oficial para o deferimento do pedido. Sendo fácil de obtê-las, esta possibilidade deve ser sempre considerada.

Para o reconhecimento extrajudicial da usucapião de unidade autônoma integrante de condomínio edilício regularmente constituído e com construção averbada, bastará a anuência do síndico do condomínio, dispensando-se a notificação dos condôminos. Em se tratando de condomínio edilício de fato, sem o respectivo registro do ato de incorporação ou sem a devida averbação de construção, será exigida a anuência de todos os titulares de direito constantes da matrícula (art. 216-A, par. 12, da Lei 6.015/73 + artigos 6º e 7º do Provimento 65/CNJ).

Além disso, o proprietário, o titular de direito sobre o imóvel, ou os confinantes, ou terceiros interessados, embora possuam certo prazo para se opor ao pedido, na prática podem impugnar a usucapião em qualquer momento do procedimento, enquanto o registro não for concluído. Não há preclusão na usucapião extrajudicial. O prazo significa, na prática, um período durante o qual o oficial deve sustar o procedimento e aguardar. E mesmo quando voltar a andar, se houver impugnação, ainda que extemporânea, o oficial deverá observar o art. 18 do Provimento 65/CNJ. O terceiro pode ser até mesmo um credor que penhorou o imóvel e quer impedir a usucapião como meio de fraude à execução, como recentemente decidiu o Conselho Superior da Magistratura do TJSP (Apelação Cível 1118113-23.2019.8.26.0100).

6. Espólio e herdeiros

Uma questão que recorrentemente vem à tona diz respeito a quem deve ser o requerente da usucapião, em caso de falecimento do possuidor. A resposta depende do momento do óbito.

Se, por exemplo, ele ocorre antes que a prescrição aquisitiva se consume (por exemplo, o autor da herança estava no imóvel há apenas 4 anos), o caso é de sucessão possessória, e a usucapião, quando completado o prazo, deverá ser pedida pelos herdeiros.

Se, contudo, o título é antigo (uma promessa de compra e venda com imissão na posse datada da década de 90, por exemplo), temos duas situações: (i) indiscutivelmente o espólio poderá fazer o pedido de usucapião, e uma vez registrada a propriedade em seu nome, os herdeiros a partilham entre si; ou (ii) os herdeiros fazem o pedido diretamente, sendo importante demonstrar ao oficial, por meio da ata notarial e outros documentos, que houve prévio acerto sobre quem sucedeu o falecido na posse do imóvel.

O segundo caso (herdeiros como requerentes) pode gerar certa controvérsia. Se o prazo da usucapião havia transcorrido antes da morte, o Espólio já era titular do domínio do imóvel (pendente de reconhecimento e registro). Usucapião é modalidade de aquisição originária que ocorre por força de lei, e não pelo registro de título. O registro tem natureza declaratória. Daí ser defensável a tese de que nesta segunda hipótese (consumação do prazo antes da morte) somente o Espólio poderia requerer a usucapião.

7. Conclusão

A proposta deste brevíssimo artigo foi consolidar em poucas linhas as modalidades de usucapião (parte material), analisar os efeitos da Lei 14.010/20 (Lei da Pandemia) sobre os prazos, e indicar algumas questões relevantes que podem surgir no curso do procedimento cartorário.

Ao instituir o procedimento extrajudicial de usucapião, o legislador conferiu ao registrador um grande poder, sem a mesma proteção dada ao magistrado. O juiz, se errar, tem o Tribunal para reanalisar o pedido, e está profissionalmente imune a responsabilidades, salvo em caso de dolo. O oficial não tem essa mesma prerrogativa, e por isso, urge a aprovação de uma norma que lhe dê esse conforto, o que certamente destravará procedimentos em todo o país.

E algo não se pode negar: a usucapião extrajudicial chegou para ficar, e já vem produzindo frutos importantes no país, evitando e extinguindo milhares de processos judiciais, e ajudando a resolver, paulatinamente, parte do problema de regularização fundiária no país. Compete a todos nós contribuir com seu permanente aperfeiçoamento, de modo a potencializar ainda mais seu uso, com a segurança jurídica necessária.

Artigo publicado na oitava edição da revista Opinião Jurídica do Secovi-SP.


Notas

1 A palavra “usucapião” é um substantivo comum de dois gêneros, ele admite os artigos feminino e masculino. Confira no Vocábulo Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, disponível em https://www.academia.org.br/nossa-lingua/busca-no-vocabulario.

2 André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Vice-Presidente do IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da OAB. Program on Negotiation and Leadership por Harvard University. Sócio de Wald Antunes Vita Longo e Blattner Advogados.

3 A exceção é a usucapião por abandono do lar, que requer posse direta, como se verá.

4 Como o Superior Tribunal de Justiça já decidiu, “para fins de usucapião admite-se tanto a acessão na posse, accessio possessionis, quanto a sucessão na posse, ou successio possessionis” (REsp 1552548/MS, Rel. Min. MARCO BUZZI, 4a. TURMA, j. 06/12/2016).

5 São aquelas destinadas à posse e ocupação pelos índios, onde possam viver e obter meios de subsistência, com direito ao usufruto e utilização das riquezas naturais e dos bens nelas existentes, que se dividem em reserva, parque e colônia agrícola indígenas.

6 Conforme consta na matrícula do registro, ou a descrição da área em caso de não individualização.

7 Nos termos da Instrução Normativa Incra n. 82/2015 e da Nota Técnica Incra/DF/DFC n. 2/2016.

8 Súmula 496 do STJ: “Os registros de propriedade particular de imóveis situados em terrenos de marinha não são oponíveis à União
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