Por Marcus Vinicius Vita, Clarissa Marcondes Macéa e Leonardo Pereira Santos Costa
O Supremo Tribunal Federal concluiu neste mês de maio o julgamento da ADI nº 5.529/DF, proposta pela Procuradoria-Geral da República, declarando a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial (LPI), em face do princípio da temporariedade da proteção patentária (CF, artigo 5º, XXIX), do princípio da livre concorrência (CF, artigo 170, IV) e do direito à saúde (CF, artigo 196), entre outros. Prevaleceu no julgamento o voto do ministro relator Dias Toffoli, acompanhado por outros oito ministros da corte.
A regra invalidada pela corte previa hipótese de vigência diferida de privilégio patentário, possibilitando que o detentor da patente fosse agraciado com proteção por prazo indefinido e superior ao prazo de 20 anos estabelecido pelo caput do mesmo dispositivo legal. Com a ampliação do período de exclusividade da exploração do invento, postergava-se a entrada de novos concorrentes no mercado e os preços ficavam em patamares mais elevados por mais tempo, em prejuízo dos consumidores.
O processo legislativo da norma não dá muitos indícios a respeito dos motivos para a sua incorporação ao texto da LPI, editada em 1996. Conforme bem recorda estudo do Grupo Direito e Pobreza da Faculdade de Direito Universidade de São Paulo (USP), a exposição de motivos da Lei de Propriedade Industrial não esclarece as razões para a inclusão do parágrafo único do artigo 40 [1]. Expediente semelhante chegou a constar da Código da Propriedade Industrial de 1967, mas já não vigia no Código de 1971, revogado pela LPI.
O projeto de lei original da LPI (PL nº 824/91), que buscava atualizar o Código da Propriedade Industrial de 1971, não continha tal disposição legal. Tampouco havia qualquer referência normativa mínima nesse sentido apresentada no primeiro substitutivo à proposição legislativa (PL nº 824-A/91), apresentado em 1992. O parágrafo único do artigo 40 da LPI só veio repentinamente a surgir no aludido projeto de lei por ocasião da apresentação do segundo substitutivo (PL nº 824-B/91), em 1993, pelo deputado Ney Lopes, perante a Comissão Especial da Câmara dos Deputados.
Apesar da capital importância do tema para o sistema de patentes e dos imensos impactos causados pela norma, parece não ter havido, por alguma razão não imediatamente aparente, os necessários debates sobre a inclusão do parágrafo único ao artigo 40 da LPI. Na realidade, a própria aprovação da nova lei parece ter ocorrido com certo grau de agilidade.
O prazo de vigência das patentes até então era de 15 anos, contados da data do depósito. Os debates travados no âmbito da Câmara dos Deputados circunscreveram-se à ampliação, de 15 para 20 anos, do prazo proteção patentária previsto no caput do artigo 40 da LPI.
Referida ampliação foi justificada, no âmbito legislativo, por dois principais motivos: 1) a mora do escritório de patentes (Instituto Nacional da Propriedade Industrial — INPI) brasileiro em apreciar os pedidos depositados de registro de patentes; e 2) o alinhamento à disciplina internacional no âmbito da Organização Mundial do Comércio, em que já se discutia a adoção de prazo de 20 anos contados da data do depósito, afinal consagrado no Acordo Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (Trips), celebrado em 1994.
Eis o que enunciou, no Plenário da Câmara dos Deputados, durante a tramitação do projeto, em abril de 1993, Raul Hey, representante da Associação Brasileira de Propriedade Industrial (ABPI):
“Muita coisa se discutiu também com relação ao prazo de vigência das patentes. A legislação atual concede 15 anos de vida para as patentes de invenção, contados da data do depósito do pedido de patente. Ocorre que o INPI leva em média, hoje em dia, de sete a oito anos entre o depósito do pedido até a concessão da patente, de modo que pelo menos metade do tempo de vida da patente é perdido pelo titular.
Diante disso, tanto o texto do substitutivo do deputado Ney Lopes como a última versão do Executivo aumentaram esse prazo para 20 anos da data de depósito.
Isso — diga-se — está de acordo com o texto de um tratado de harmonização em matéria de patentes que está sendo discutido pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual, ou seja, acompanha-se a tendência internacional nesse ponto, o que é extremamente saudável para o País que pretende inserir-se no contexto internacional” [2] (grifos dos autores).
Curiosamente, para além de se ampliar de 15 para 20 anos o prazo de vigência da proteção patentária, adotou-se na proposição legislativa também o parágrafo único do artigo 40 da LPI (que permitia prazos ainda maiores), sob a seguinte justificativa:
“Acolhemos, ainda em relação ao prazo de vigência da patente, um parágrafo único ao artigo 40 de nosso substitutivo que determina que este não poderá ser inferior a 10 anos, para patentes de invenção, e de sete anos, para modelos de utilidade. Julgamos ser essa proposta extremamente justa, pois como o prazo de vigência da patente começa a ser contado a partir do depósito do pedido, ocorre que, havendo protelações administrativas injustificáveis, que levam anos para serem decididas, a patente vigora apenas por poucos anos. A presente medida corrige, portanto, definitivamente essa imperfeição de nosso sistema” [3] (grifo dos autores).
E foi com base nessa justificativa, relativamente pouco técnica (e já utilizada para a ampliação do prazo disciplinado no caput), que o parágrafo único acabou sendo aprovado em âmbito legislativo, sem maiores debates, passando a integrar a LPI até a declaração de sua inconstitucionalidade pela Suprema Corte.
Ao analisar a compatibilidade do dispositivo com a Constituição, o voto do ministro relator Dias Toffoli não descuidou da análise do processo legislativo da norma, anotando que “mesmo após detido exame dos documentos do processo legislativo de elaboração da Lei nº 9.279/96, não se obteve nenhuma menção acerca da motivação da regra do parágrafo único do artigo 40. Ao que parece, não obstante a elevada importância do preceito em tela, ele foi inserido na lei sem maiores debates (…)”.
As circunstâncias fáticas motivadoras do acréscimo de tal dispositivo ao projeto da LPI não são tão explícitas nas discussões legislativas travadas à época, mas tudo leva a crer que essa peculiar e distinta norma deriva de pressões e pretensões de grupos econômicos predominantemente estrangeiros que viam, no Brasil, um mercado atrativo inexistente até mesmo em seus países de origem. Quanto maior o prazo do privilégio patentário, maiores os ganhos auferidos pelos detentores de patentes.
A confirmar essa suspeita, veja-se que, segundo relatório de atividades do INPI para o exercício de 2018, apenas 20% dos depositantes de patentes no Brasil têm origem brasileira. Nessa linha de consideração, observou o ministro relator, no julgamento em que foi proclamada a inconstitucionalidade da norma, ser “forçoso concluir que a maioria dos requerentes têm tratamento mais favorável no Brasil do que em seus próprios países, o que claramente nos coloca em posição destoante dos demais signatários do acordo Trips”.
Essa posição destoante a que aludiu o relator não mais subsiste diante da declaração de inconstitucionalidade da norma. Com ela, o prazo de proteção patentária passa a ser somente aquele de 20 anos contado do depósito do pedido — previsto no caput do artigo 40 —, em perfeito alinhamento com o quanto acordado em âmbito internacional.
Ao longo do julgamento havido no STF, os defensores da constitucionalidade do dispositivo chegaram a afirmar que a norma encontraria correspondência em institutos utilizados, em regra, por países desenvolvidos, como o patent term extension [4], o patent term adjustment [5] e o supplementary protection certificate [6], que possibilitam a extensão patentária por prazo determinado, mediante a observância em cada caso de determinados requisitos (provocação do interessado e comprovação de que o depositante não deu causa a demora administrativa, por exemplo). Os debates legislativos que permearam a edição da norma, contudo, nada dizem a respeito.
O ministro relator cuidou de analisar, em seu voto, cada um desses instrumentos, concluindo que eles “contêm mecanismos que impedem que o prazo de validade da patente seja estendido por mais tempo do que o necessário”,sendo efetivamente distintos da regra brasileira, que permitia extensões indefinidas, mesmo em casos em que o interessado pudesse ter dado causa à demora administrativa.
Como se vê, as razões para a edição de uma norma podem fornecer subsídios para que o Poder Judiciário forme sua convicção a respeito de sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade. A falta delas também.
[1] A Inconstitucionalidade do Artigo 40, Parágrafo Único, da Lei de Propriedade Industrial sob uma Perspectiva Comparada, https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3745372, p. 3.
[2] Publicado em Suplemento ao DCM1 de 14/04/1993: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD14ABR1993SUP.pdf#page=1.
[4] Segundo o Estudo do Grupo Direito e Pobreza da USP, a noção de Patent Term Extension (PTE), refere-se a “mecanismos que criam alguma forma de estender a proteção originalmente concedida por uma patente por meio de um mecanismo separado (mais limitado) que garante uma forma de exclusividade de mercado” (Op. cit., p. 24).
[5] Uma segunda categoria de exclusividade para ajustar a vigência de uma patente em razão do trâmite administrativo é o Patent Term Ajustment (PTA). Segundo o Estudo do Grupo Direito e Pobreza da USP, “a constante do instituto é de que o prazo máximo do ajuste deve corresponder ao tempo de mora administrativa injustificada no procedimento de concessão da patente, independentemente do prazo de sua concessão.” (Op. cit., p. 28). Surgiu nos Estados Unidos e posteriormente foi implementado, por exemplo, no Chile, na Coreia do Sul e em Singapura.
[6] Segundo o Estudo do Grupo Direito e Pobreza, os Supplementary Protection Certificates – SPC seriam uma espécie de “termo específico do PTE presente em países da União Europeia. O SPC para produtos medicinais da União Europeia, por exemplo, possui a prerrogativa de compensar os titulares de patentes farmacêuticas ou fitossanitárias pelo tempo de exploração perdido em razão dos longos testes obrigatórios e ensaios clínicos que esses produtos exigem antes de obter a aprovação regulamentar de mercado.” (Op. cit., p. 24).
Publicado no Consultor Jurídico.