12 September, 2022 - News Arnoldo Wald no ConJur: 70 anos de advocacia

Por Márcio Chaer e Rafa Santos, do Consultor Jurídico

Conheça o advogado mais completo da história do Brasil (Parte 1)

Ele foi professor de Direito, conselheiro federal da OAB, procurador-geral de Justiça, procurador-geral de Estado, representante do Brasil na Corte Internacional de Arbitragem, presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Mas seu maior “cargo” mesmo é o de advogado. Segundo Márcio Thomaz Bastos, Arnoldo Wald é o mais completo advogado que o Brasil já conheceu. Impossível negar. 

Ele é autor de algumas das principais teses jurídicas que viabilizaram planos econômicos, como o Real — que derrubou a inflação estratosférica brasileira —, e das obras que modernizaram o país. Foi o criador do mecanismo que instituiu no país a correção monetária, o leasing, a alienação fiduciária em garantia e algumas das melhores ferramentas do Código Comercial. Pioneiro de soluções técnicas, aperfeiçoou o Estatuto da Advocacia e do Ministério Público.

Ao completar 90 anos de idade e 70 de advocacia — computados os dois anos de estágio, quando já produzia ideias geniais, como a da “escala móvel” (primeiro nome da correção monetária), Arnoldo Wald, na entrevista que se segue, mostra porque merece o qualificativo de Thomaz Bastos — que é compartilhado pelo ministro Gilmar Mendes, ministro com quem Wald compartilha a produção de quatro livros.

Grandes nomes, como Rui Barbosa, Pontes de Miranda, Miguel Reale ou Ives Gandra Martins, compareceram, em seus respectivos campos com contribuições monumentais para o Direito e para a Advocacia. Mas nenhum deles atuou em frentes tão diversas, e de forma tão profícua, como Wald.

A produção acadêmica é capítulo à parte. Nenhum exemplar, dos 19 títulos que assina como autor ou dos 20 que coordenou e é coautor, pode ser encontrado nos sebos que atulham livros de Direito.

Leia os principais trechos da entrevista: 

ConJur — Qual foi o seu primeiro caso de arbitragem?
Arnoldo Wald — O primeiro caso internacional que eu peguei foi no fim da década de 1970, um caso em que a Petrobrás, que tinha uma subsidiária, que se chamava Interbrás, tinha contratado com empresas da Líbia a construção de poços de água. Porque a Líbia tinha petróleo e não tinha água, então era preciso fazer a construção de poços de água e isso dependia de projetos que as empresas líbias não entregaram. E a Petrobrás tinha um prazo para cumprir e, se não cumprisse, tinha uma multa muito grande, que deveria ser paga aos líbios e que se chamava “garantia à primeira demanda”. Quer dizer, é uma obrigação que você não podia discutir, tinha que pagar a multa, e essa garantia era dada pelo Banco do Brasil.

ConJur — Na Líbia, um poço devia ter um quilômetro profundidade…
Arnoldo Wald — E os dados que os líbios deram não permitiam fazer esses poços. E acontece que, na ocasião, uma antiga aluna minha era a pessoa que tratava dessas questões na Petrobrás e me disse: “Nós não tivemos arbitragens aqui na Petrobrás anteriormente, o senhor pode nos ajudar? Porque estamos muito preocupados, o Banco do Brasil vai ter que pagar uma fortuna e nós sabemos que com o tal Kadafi [Muammar Kadafi (1942-2011)], o dinheiro que vai para lá não volta”.

Eu consegui uma liminar no Rio de Janeiro, sem prejuízo da continuação da arbitragem, para não pagar. E aí o pessoal ficou muito satisfeito; uma semana depois me liga o consultor jurídico do Banco do Brasil, lá de Brasília e me diz: “O presidente gostaria que nós conversássemos consigo, o senhor pode vir almoçar conosco?” e fui a Brasília almoçar.

E me disseram: “Ficamos muito satisfeitos de não ter que pagar essa multa astronômica e indevida, e sabíamos que não haveria devolução, qualquer que fosse a decisão da arbitragem. Mas, no plano internacional, o Banco do Brasil ainda não se firmou, então ele não cumpria uma obrigação à primeira demanda, que é um negócio meio chato”. Eu digo: “Bom, então, vocês podem pagar, não tem problema, ou pagam ou conseguem a decisão judicial”. Disseram: “Não, não queremos pagar, não. Nós queríamos ver se você conseguia uma decisão que não fosse do juiz de primeira instância do Brasil, porque a Petrobrás conseguir uma decisão brasileira em um caso internacional pode parecer meio suspeito”. Eu disse: “Vou ver o que posso fazer”.

Voltei para o Rio e aí me lembrei, vi a documentação, e quem tinha dado a garantia era Agência de Milano, a filial do Banco do Brasil de Milano. Eu digo: “Bom, vou ligar para o nosso colega italiano e saber se a gente consegue alguma coisa na Itália”. Ele me diz: “Não, garanta a primeira demanda, é um negócio que não tem jeito…” Mas acrescentou: “É contra a Líbia? Contra a Líbia é fácil”.

Uma semana depois, eu liguei para o consultor jurídico do Banco do Brasil e disse: “Consegui uma decisão italiana confirmando a decisão brasileira, e agora é do Tribunal de Milão. Vocês não precisam se preocupar”. Bom, não precisavam se preocupar que a arbitragem estava indo muito bem, mas levou quarenta anos.

ConJur — Quarenta anos?
Arnoldo Wald — Quarenta anos, porque os líbios também não tinham documento e nós queríamos os documentos e as plantas, e na perícia, anularam uma decisão. Quarenta anos depois, ainda não estava resolvido, quando o Lula foi visitar o Kadafi e aí o Kadafi o recebeu muito bem. O Lula disse: “Tem um negócio aqui que vocês têm que desistir, porque vocês não tem razão nenhuma”. “Ah, esse negócio, não sabemos nem o que é”, chamou assessores: “Desiste desse pedido de multa aí”.

Pois é, aí eu liguei depois para o meu colega italiano e ele disse: “Mas já acabou? Quarenta anos.” Ele disse: “É, mas eu esperava que isso ficasse para o meu filho, para continuar discutindo isso mais vinte anos”. Bom, só para mostrar a você o clima em que estava…

ConJur — A lei é de 1996, mas ela foi implementada quantos anos depois?
Arnoldo Wald — A lei surgiu de um modo até sui generis, porque a Câmara de Comércio Internacional (CCI) criou a arbitragem moderna, em 1927, ou seja, há quase um século. A CCI, a Corte Internacional de Arbitragem, começou a tratar de arbitragens nacionais e internacionais, e criou-se aqui no Brasil uma filial da CCI. Uma agência que foi no Rio de Janeiro, na Confederação Nacional do Comércio. Quem inicialmente tratava disso era o professor Theophilo de Azeredo Santos, que morreu há algum tempo, e o já aposentado ministro Ernane Galvêas, que tinha sido ministro da Fazenda. E tocaram isso durante trinta, quarenta anos, e organizavam congressos.

ConJur — O senhor foi representante?
Arnoldo Wald — Eu fui representante durante mais de dez anos, depois do que eu achei que já tinha cumprido a missão, porque era uma reunião por mês. É muito gostoso ir para Paris, mas se você tiver que arcar com as suas despesas e trabalhar muito, e não ter muito tempo para ficar… Quando aceitei, eu pensei: “Bom, depois eu tiro uma semana de férias”, mas não consegui. Funcionou, gostei, fiz amizades e fiz relações, foi muito bom. Em 1990, um advogado pernambucano que se chama Petrônio Muniz encontrou umas documentações da CCI do Brasil, desses congressos, e disse: “Por que a gente não faz isso no Brasil?”. Aí reuniram-se o professor Carlos Alberto Carmona, a Selma Lemes e o Pedro Batista Martins, e fizeram um projeto de lei. Aí disseram ao Petrônio: “O que nós fazemos com esse negócio?” E ele disse: “Eu tenho um vizinho lá no Recife que se chama Marco Maciel, vou levar para ver se ele consegue dar andamento”. E o Marco Maciel conseguiu dar andamento. Depois, eu acho que foi o Fernando Henrique, que era o presidente na ocasião, que sancionou, então entrou em vigor em 1996.

ConJur — O jornal Valor Econômico publicou um levantamento da professora Selma Lemes que mostra que chegamos aos mil casos de arbitragem. Não é pouco, mil para um país do tamanho do Brasil?
Arnoldo Wald — É, mas a arbitragem não é para a conta do padeiro que você não pagou, não é para o aluguel que você não pagou do mês passado… É na realidade para questões de certa dimensão econômica e social. E mil casos para o Brasil, que até 1995 tinha um ou dois casos por ano, é um progresso real e um progresso realizado com bons juristas, com bons advogados, com toda uma formação que se fez. A Selma teve um grande papel nisso, o Carlos Alberto Carmona também. A arbitragem é rápida, mas não é tão rápida quanto gostaríamos que fosse, tem na média de dois a quatro anos.

ConJur — O senhor acredita que a existência de cláusulas arbitrais pode atrapalhar ou ajudar esse processo de recuperação judicial?
Arnoldo Wald — Eu acho que pode ajudar, porque algumas vezes não se encontram soluções, e para o Judiciário fica mais difícil do que para os árbitros. Até a imagem é uma coisa que pode se usar, um árbitro de arbitragem de emergência, ou arbitragem expedita para não atrapalhar a vida e arbitragens coletivas. Na Oi chegamos a usar plataforma para poder resolver muitos casos, que resolvemos. Alguns são mais difíceis de resolver, não vou citar casos, mas tem situações em que uma arbitragem facilita. E até como uma indução ao acordo: as partes dizem: “Não vou fazer acordo nenhum”, mas aí começa a arbitragem, e concluem que é melhor fazer um acordo.

ConJur — Como foi desenvolvido o conceito da correção monetária?
Arnoldo Wald — A correção monetária surgiu quando o brasileiro começou a sentir os efeitos da inflação, que durante muito tempo foi ou dominada ou escondida, e não estava no conhecimento público. Quando me formei, discutia-se muito a cláusula ouro, porque em alguns contratos se dizia: “Vamos ter que pagar o que equivale a um quilo de ouro”, por exemplo. Isso existia, mas a lei proibia em certos casos, autorizava em outros e quando fui fazer a minha tese de doutorado, conversei com o professor Santiago Dantas, que era meu professor, e de quem eu era assistente, e ele me disse: “Eu tenho até alguns pareceres recentes sobre cláusula ouro, é uma coisa que você podia estudar”. Aí eu recebi uma bolsa para a França e lá se discutia muito, já naquela época, uma inflação maior que eles tiveram depois da Primeira Guerra Mundial. Depois da Segunda Guerra Mundial as situações lá mudaram completamente. E discutiam o que se podia fazer; e aí eu decidi fazer uma tese sobre a inflação, que eu chamei de “Cláusula de Escala Móvel” e publiquei em 1955.

Eu era professor em uma faculdade do Rio para a qual nós íamos de automóvel e eu ia com alguns desembargadores, e um deles me disse: “A sua tese é interessante, mas muito teórica”. E quinze dias depois ele me liga e diz: “Não imagina o que aconteceu hoje, me apareceu lá um caso de aluguel com cláusula de escala móvel e eu dei uma aula para os desembargadores, e eles ficaram atônitos! Me perguntaram como é que eu sabia”. E aí a coisa começou a entrar nos costumes, nos contratos de locação. Depois, como a gente discutiu muito, em desapropriação, porque eu ainda hoje estou julgando no STJ um caso de desapropriação de um terreno na Paulista que foi desapropriado pelo preço de 50 anos atrás.

ConJur — O senhor trabalhou na implementação do mecanismo de correção monetária?
Arnoldo Wald — Trabalhei. Anos depois, o Franco Montoro, na época do Jango, em 1963, me chamou para estudar o problema da Previdência. O INSS da época — havia cinco ou seis institutos. Cada área tinha um instituto, e esses institutos e a Caixa Econômica davam empréstimos por trinta anos com prestações fixas. Então, inicialmente, vamos dizer, em 1930, você conseguia construir uma casa, trinta anos depois conseguia com o mesmo valor pagar um cafezinho. Basta dizer que eu comprei uma casa de um financiado que faltavam vinte anos, quando chegaram as últimas prestações, um boy que trabalhava comigo, o rapaz que pagava pra mim as prestações disse: “Professor, o preço do ônibus são dez prestações. Então é melhor o senhor adiantar as dez prestações…”. E aí nós vinculamos as prestações dos institutos ao salário mínimo, que foi o primeiro passo. Na mesma época, houve o Projeto Bilac Pinto para a escala móvel dos salários.

ConJur — O Roberto Campos participou também da implementação?
Arnoldo Wald — Participou, porque aí depois que caiu o Jango, veio o Castelo Branco. E, com Roberto Campos, ministro na ocasião, com Otávio Gouveia de Bulhões, fizeram a correção monetária quase generalizada. Depois ele realizou-se em todos os pleitos judiciais, foi uma luta para aumentar o leque de aplicação. E depois começaram a haver restrições, só aplicam uma vez por ano, também para não ser um multiplicador da inflação.

ConJur — Como é que o senhor compara o Brasil dessa época com o Brasil atual?
Arnoldo Wald — Eu acho que o Brasil progrediu muito em muitas coisas, mas não progrediu em outras em que deveria ter progredido. Acho que o ensino não melhorou muito, nós proletarizamos o ensino e eu acho que é bom, mas eu algumas vezes digo que deveríamos ter democratizado. O que quer dizer no fundo popularizar, facilitar, dar bolsas de estudo, mas não fazer com que o sujeito, para ter um financiamento, se habilite em uma faculdade e fique lá pagando, sem ir à faculdade e sem controle nenhum. O Fies em um certo momento andou meio atrapalhado. E também acho que se deveria ter dado mais ênfase ao ensino profissional e menos aos títulos de doutor. Eu sou doutor, várias vezes, e fiz questão de ser doutor, mas eu acho que multiplicar doutores só pelo título não adianta nada.

ConJur — O senhor participou de todos os grandes projetos, das grandes obras do Brasil nesses… São quantos anos de carreira, professor?
Arnoldo Wald — Sessenta e oito. Se eu falar em setenta, eu não vou mentir, porque eu vou calcular dois anos de estagiário. Mas, do ponto de vista formado mesmo, eu me formei no dia 16 de dezembro de 1964.

ConJur — O senhor atuou em algum momento como jornalista, professor?
Arnoldo Wald — Fui diretor do Correio da Manhã.

ConJur — Diretor do Correio da Manhã? Fazia reportagem, entrevista?
Arnoldo Wald — Não, não. Eu escrevia artigos, mas cheguei a fazer editorial.

ConJur — Como foi o seu caminho no jornalismo?
Arnoldo Wald — Eu estudava em um liceu francês e houve um almoço em homenagem a um professor. Neste almoço, quando acabaram os discursos, houve um coquetel e o diretor do meu colégio em uma certa hora me chamou e disse: “Quero lhe apresentar um dos homens que mandam no Brasil” — e me apresentou ao Dr. Paulo Bittencourt, que era o dono do Correio da Manhã. O diretor disse: “O Arnoldo me fez um trabalho recente sobre literatura, que eu acho que é de interesse para a nova mocidade conhecer”. E o Paulo disse: “Me interessa muito, espere aí um minutinho”, aí chamou o Álvaro Lins, que era o diretor do suplemento literário do Correio da Manhã da época. Disse: “Álvaro, tem aqui um professor que está me apresentando um jovem estudante que está entrando na universidade, escreveu um artigo interessante. Será que você pode publicar?”. Aí ele disse que sim. Aos 16 anos, escrevi meu primeiro artigo para o Correio da Manhã. Nos trinta anos seguintes, mantivemos contato e escrevi numerosos outros artigos, até que numa outra gestão Osvaldo Peralva me convidou para assumir a Diretoria Jurídica do jornal.

Me puseram como diretor do Correio da Manhã na fase mais difícil, em que o jornal estava quase falindo, porque o governo cortava as verbas. Aí inventei O Correio Econômico, que é um antepassado remoto do Valor.


‘HCs no regime militar foram as causas de que mais me orgulho’, diz Arnoldo Wald (Parte 2)

O Brasil já teve e tem grandes nomes do Direito: Rui Barbosa, político, diplomata e estadista; Pontes de Miranda, versado em Matemática, Ciências Sociais, Filosofia e política; Sobral Pinto, humanista, arauto do iluminismo que enfrentou tempos perigosos — nem tanto quanto Luiz Gama, que driblou a escravidão e tornou-se patrono do abolicionismo brasileiro.

Comparar advogados, assim como juízes e jornalistas, é delicado. Ninguém é bom em tudo. Aos olhos da multidão, os criminalistas sempre têm mais relevo. Não por acaso. O produto do seu trabalho é a vida e a liberdade. A engenharia jurídica que viabiliza obras, soluções monetárias ou financeiras, destrincha intrincadas questões — em última análise, destrava o desenvolvimento — reverbera menos.

Unanimidade não há. Mas nenhum outro chegou tão perto, no campo cível, quanto Arnoldo Wald — que acaba de completar 90 anos, 70 de advocacia. Ele passeou de mãos dadas, durante essas décadas, com a Justiça, com a Economia, com a História e pontificou como nenhum outro na tecnologia de ponta do Direito.

Na segunda parte de sua entrevista, ele narra algumas passagens dos movimentos importantes que viveu na defesa de perseguidos políticos e dos planos econômicos que estabilizaram o país. E como fez para evitar, no Brasil, a repetição do crash de 1929, que levou os Estados Unidos à lona. Não por acaso, a solução encontrada — o Proer — seria depois copiada pelos americanos.

Leia a segunda parte da entrevista de Arnoldo Wald:

ConJur — Professor, quais as causas das quais o senhor mais se orgulha?
Arnoldo Wald — Eu me orgulho mais das decisões que eu tive em Habeas Corpus, porque são as mais importantes para a sociedade brasileira. As outras são importantes do ponto de vista econômico, do ponto de vista social, mas não do ponto de vista daquele momento na ditadura.

ConJur — O senhor se refere ao Habeas Corpus de 1964 no STM, em favor do Evandro Muniz. Esse foi o primeiro HC concedido depois de 1964? E a primeira liminar em HC, não?
Arnoldo Wald — Foi a primeira liminar em Habeas Corpus, porque até aquela época não havia razão para ter liminar em HC. Você entrava com pedido e em cinco dias a autoridade tinha de decidir. Quando veio o regime militar, a autoridade não falava, não dava notícia e o processo ficava parado, e o sujeito podia ficar preso. Então não havia liminar em Habeas Corpus, e, quando eu falei em liminar com os ministros da Justiça Militar, eles disseram: “Mas isso não está na lei brasileira”. Eu disse: “Não, mas o mandado de segurança é o filho do Habeas Corpus, o HC foi que deu ensejo ao mandado de segurança. E no mandado de segurança tem a liminar, então deveria ter também no Habeas Corpus”. “Mas não teve até agora”, responderam. Argumentei: “Não teve até agora porque não houve necessidade. Não havendo necessidade, por que nós íamos criar mais um momento processual? Mas, agora, quando a autoridade não responde e o réu está preso, a situação mudou. Então o juiz dá a liminar e depois vê a informação quando vier, e continua, mas já com o paciente livre”.

E aí foi o almirante de esquadra no STM, que ainda era no Rio de Janeiro, que me disse: “Olha, o seu raciocínio me parece lógico”. Respondi: “Se o senhor der a liminar vai ser o argumento de autoridade, e não somente um argumento lógico”. Aí ele deu a liminar, na semana seguinte levou ao Plenário. Se fosse um ministro civil talvez não tivesse a mesma receptividade, mas era ministro militar, almirante de esquadra.

E o segundo caso foi até mais complicado, um pouquinho porque foi no Supremo Tribunal Federal, em favor do antigo governador do Amazonas Plínio Coelho, que estava fugindo de ameaças e prisões na Amazônia e estava se escondendo por lá e não conseguia sair. E um amigo dele me procurou. Eu disse que não fazia Habeas Corpus, mas me disseram que nenhum advogado queria pegar o caso.

Aí eu pedi o HC ao Supremo e no dia em que ia proceder o julgamento, o relator me chamou e me disse: “Doutor Wald, tem um caso seu aí em que o senhor pode me ajudar?”. E eu disse: “Certamente, com muito prazer e muita honra”. “Pois é, eu quero que o senhor me garanta que se o Supremo der a ordem, ela vai ser cumprida na Amazônia”, que naquela época era uma área relativamente militarizada e o Supremo não tinha certeza de ver as suas ordens cumpridas.

“Professor, o problema é seu. Se o senhor me disser que garante, nós vamos dar o Habeas Corpus, se o senhor não me disser, nós vamos denegar por unanimidade, porque o presidente Ribeiro da Costa disse que se houvesse uma ordem do Supremo não cumprida ele ia pegar a chave do Supremo e ia devolver ao presidente da República. E aí o senhor e eu ficaremos sem função”. O que nós íamos fazer? “O senhor tem dez minutos, eu vou tomar café e quando sair do café, o senhor me diz a solução que encontrou.” Foram os dez minutos mais duros da minha profissão porque…

ConJur — E o telefone naquela época era difícil…
Arnoldo Wald — Era difícil e não tinha para quem telefonar, pensei: “Se eu prometer ao Supremo e não cumprir, terei mentido ao Supremo. Se disser ao Supremo que não posso fazer nada, o meu cliente vai ser condenado à morte praticamente e eu, como advogado, não cumpri a minha missão”. Então foram realmente uns dez minutos em que não tomei nem café, não consegui fazer nada a não ser pegar o Vade Mecum e dizer: “Quem sabe se eu encontro algum segredo aí”. E aí vi que em certos casos, que não eram comuns, o tribunal poderia convocar o paciente. Então no fundo, se ele convocar o paciente, de duas uma: ou vão obedecer ou não vão obedecer. Se não obedecerem, eu fiz o que eu podia fazer. Se obedecerem, ele chega aqui, vai fazer a defesa dele, vai esclarecer os ministros e tem as garantias constitucionais.

E essa decisão era importante, como a primeira, aliás, porque definiu que as autoridades civis não podem ser processadas pela Justiça Militar, a não ser que tenham roubado o quartel (risos), aí é diferente, mas… E aí o ministro saiu e eu disse: “Ministro, acho que encontramos uma solução”. “Ah, que bom. E qual é a solução?”. Disse: “O senhor determinar o comparecimento do paciente”. Ele respondeu: “Eu vou levar isso ao tribunal, se o tribunal achar que pode, tudo bem”. Aí eles foram para a sessão e decidiram pela convocação. Na semana seguinte ele compareceu, havia três ou quatro oficiais do exército para prendê-lo se não tivesse o Habeas Corpus. Ele pediu a palavra e deram 15 minutos, depois ele pediu mais um tempinho, falou quatro horas, convenceu o Supremo.

ConJur — Nessa época o acusado podia fazer a própria sustentação?
Arnoldo Wald — O próprio podia. Especialmente em Habeas Corpus naquelas condições. O caso era muito sui generis em todos os sentidos, mas ele foi convidado para prestar informações ao tribunal e prestou informações. Esclareceu que tinha obtido Habeas Corpus do Tribunal de Justiça do Amazonas, que não era respeitado e que o único jeito era ir ao Supremo, pela situação de insegurança e incerteza que tinha, e aí deram a medida por unanimidade.

A minha carreira de penalista acabou naqueles dois casos, mas eu acho que são os dois casos mais importantes do ponto de vista social da minha vida. Porque defendi muita gente, muita coisa, defendi muito ministro, eu ainda estou no Supremo Tribunal Federal com um caso de ação civil pública contra o ministro (Pedro) Malan e outros por terem aprovado o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer). O Proer foi um financiamento que deram, depois do Plano Real, aos bancos para reajustarem as suas situações, porque eles não tinham mais o dinheiro depositado e ficaram sem rentabilidade por três ou quatro dias, mas que naquela época representava uma parte importante da receita deles. E os ministros foram condenados por improbidade e estou no Supremo com agravo para conhecimento de embargos de declaração.

ConJur — Foi o Proer que salvou os bancos de explodirem?
Arnoldo Wald — Pois é, que salvou os bancos e o sistema monetário.

ConJur — Foi nessa época se criou o Fundo Garantidor de Crédito, não foi?
Arnoldo Wald — Todo o sistema atual foi criado naquela época.

ConJur — E teve muitas críticas na ocasião, mas depois o Brasil compreendeu…
Arnoldo Wald — Eu juntei depois uma declaração do Lula dizendo que o Proer tinha sido o que salvou o Brasil, e foi imitado pelos Estados Unidos, que o presidente dos Estados Unidos mandou fazer o Proer lá na base do nosso do Brasil. Advogado tem de utilizar todos os meios lícitos para defender o cliente.

ConJur — Conforme dados do Anuário da Justiça de 2022, o número de processos no início deste ano chegou a 80 milhões. Isso mostra uma confiança no sistema jurídico e judicial?
Arnoldo Wald — Ou uma falta de harmonia na sociedade. Eu acho que muitas ações poderiam ser evitadas pela mediação, pela conciliação, a arbitragem funciona muito como meio de levar as pessoas ao acordo, então você na realidade, em vez de levar quatro anos, seis meses depois as partes chegam à mesa e já entendem quais são os argumentos da outra parte, o que os árbitros estão vislumbrando. Tem uma técnica de arbitragem em que se parte da ideia seguinte, no fundo o árbitro tem dois cenários: O cenário do demandante e do demandado, cada um conta uma história, as duas histórias parecem não ter nada de comum, algumas vezes você diz: “Mas o que tem a ver uma coisa com a outra?”. Então o tribunal deveria, algumas vezes, olhar para um terceiro cenário a partir do que cada um disse e provou. É importante sempre tentar induzir um acordo.

ConJur — O senhor atuou muito fortemente nas ações contra os planos econômicos?
Arnoldo Wald — Foi, porque na realidade no primeiro plano econômico, que foi do ministro (Dilson) Funaro (Plano Cruzado), eu era advogado do Unibanco em algumas causas e o diretor jurídico do Unibanco me ligou e disse: “Eu tenho problema de desequilíbrio entre prestações”. E eu disse: “Mas eu não faço família”. E ele: “Não é de família, não, é desequilíbrio entre depósitos e créditos”.

Houve um juiz do Rio que, a pedido do Ministério Público, estabeleceu um teto de acordo com o qual só se poderia cobrar 12% de juros ao ano, quando a inflação estava em 40%. Aí o juiz deu a liminar e decidiu que: “Se os bancos do Rio de Janeiro — que eram cinco ou seis grandes bancos — não obedecerem, eu vou mandar prender os presidentes dos Conselhos Administrativos”, que eram nada menos do que Walther Moreira Salles e Olavo Setubal, entre outros.

Os advogados dos bancos me disseram: “Bom, nós temos de fechar os bancos segunda-feira, porque nós não vamos mais poder operar e o Banco Central não quer nos deixar suspender as operações”. Explicamos tudo para eles (diretores do Banco Central): “É problema de vocês”, eles disseram.

Eu fui conversar com o juiz, que me disse: “Talvez eu tenha dado uma decisão muito forte, mas acabo de dar uma entrevista explicando que era uma decisão importante e não posso voltar atrás. Saiu o jornalista agora, mas eu posso voltar atrás? Não fica bem”.

Aí fui ao presidente do Tribunal do Rio, que era o Wellington Moreira Pimentel, que tinha sido meu colega de faculdade: “Desembargador”… “Não me chame de desembargador, me chama de você”… “Vim aqui despachar consigo, tem essa história, vou requerer a suspensão”. Ele me respondeu: “Não faça isso porque eu vou ter de mandar ouvir o Ministério Público e depois o tribunal, e acaba de acontecer o seguinte: recebi neste momento uma ligação telefônica do governador, que era o Brizola, dizendo que foi a melhor decisão que o Tribunal de Justiça deu nesses 50 últimos anos. Então eu não posso decidir rapidamente, tenho de ouvir o Ministério Público, vou levar ao Plenário, são 36 desembargadores, alguns nomeados pelo Brizola, não sei o que vai acontecer”.

Eu disse: “Mas não dá, vão fechar os bancos”. “Problema dos bancos” (risos). Aí voltei ao meu pessoal do escritório e disse: “Vamos tentar alguma coisa no Supremo, mas o quê? Não dá para pular as instâncias”. Eu disse: “Eu acho que é um conflito de atribuições, porque o juiz se atribuiu, na realidade, o direito de fixar teto de juros, que é competência legislativa, ou então competência do Banco Central”. Foi no mês de julho e o STF estava de férias. O único ministro que estava em Brasília era o ministro (Francisco) Rezek. Afinal de contas, consegui falar com ele, que me disse: “Professor, não consegue resolver os seus problemas no Rio? Em julho, é uma maldade o que o senhor está fazendo comigo”. Eu respondi: “Não, a maldade fizeram comigo, agora eu preciso da sua ajuda e da ajuda da Justiça”. Ele disse: “Ah, bom, então o senhor quer chegar daqui a meia hora?”. Eu estava no Rio de Janeiro. Cheguei lá antes do jantar e conversei com ele: “Estou vendo que o negócio é complicado mesmo, complicado subjetivamente e objetivamente”. E eu disse: “Mas eu vim aqui porque só o Supremo pode sair disso, porque é evidente o conflito”.

Umas sete, oito horas da noite, tocou o telefone, a secretária já tinha o despacho, o ministro concedeu a liminar, mas disse: “Como o senhor vai conseguir comunicar isso a quem de direito é problema seu”. Então eu digo: “Vou aí, pego o processo, vou ver o que eu posso fazer”. O Supremo fechado, consegui ligar para o porteiro do Supremo: “Pode abrir o Supremo para mim?”. Ele disse: “Abrir eu posso, estou pescando no momento, mas eu posso interromper a pescaria, já que o senhor está aí. Já veio do Rio para Brasília, eu posso ir. Mas não é suficiente, porque eu abrindo o Supremo, o que vou fazer? Tem de ter o telexista”. Ainda era Telex. Encontrei o telexista na casa da namorada, fomos buscar o telexista, abrimos o Supremo em um sábado às 11 horas da noite, e mandamos o Telex, aí o sujeito telexista falou: “Pra quem eu mando?”. E eu disse: “Manda para o presidente do Tribunal de Justiça do Rio, para o juiz, para o procurador-geral da Justiça, para o procurador-geral do estado, todos os gastos de telex eu pago”. E eu saí de lá meia-noite e meia. Eles me ligaram e disseram: “Estamos mandando o avião da Febraban para buscá-lo, para você voltar íntegro da sua peregrinação”. E, cinco anos, depois ganhei isso no Plenário, seis a cinco.

Publicado no Consultor Jurídico (Parte 1 e Parte 2).

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