Por Julia de Baére, Gabriela de Barros Sales, Alexandra Frigotto e Ana Luisa Fernandes Pereira de Oliveira
Regulamentação estabelece requisitos que devem ser observados pelo juiz para deferimento da consolidação substancial
A recuperação judicial de grupos econômicos apresenta-se como desafio em tempos incertos como os atuais. Por diversos fatores, em atenção aos princípios de economia processual, eficiência e segurança jurídica, a evolução da doutrina e da jurisprudência foi impondo às empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico, de fato ou de direito, a reunião em litisconsórcio ativo quando da apresentação de pedido de recuperação judicial.
O notável e avassalador aumento de pedidos de recuperações judiciais, a complexidade das organizações das empresas atuais e a crescente demanda por soluções que atendam ao soerguimento não somente de uma empresa, mas do grupo empresarial a que pertence, culminaram no surgimento da consolidação processual e substancial.
A Lei 11.101/2005 não previa expressamente tais medidas, em que pese já praticadas com fundamento no art. 113 do CPC c/c os arts. 28 do CDC e 50 do CC, adotados de forma subsidiária.
Recentemente, a Lei 14.112/2020, em vigor desde janeiro de 2021, atualizou a legislação recuperacional e falimentar, preenchendo a lacuna e incluindo o que já se observava na prática, nos arts. 69-G ao 69-L da LRF.
Deu-se o nome de consolidação processual quando, em que pese a existência de controle comum empresarial, o processamento de recuperações judiciais autônomas é reunido de maneira unicamente formal. Percebe-se que a reunião de atos não conflitantes garante às empresas sua plena autonomia patrimonial e jurídica e a apresentação de planos de recuperação judicial individualizados.
Com efeitos diversos, contrapõe-se a chamada consolidação substancial, na qual a autonomia jurídica dos devedores é ignorada, na medida em que os seus passivos e ativos são combinados e tratados como se fossem um só. Não há, portanto, interesses empresariais autônomos ou desigualdade entre os credores de cada classe.
Em 2019, o Conselho da Justiça Federal, na III Jornada de Direito Comercial, ressaltou em enunciado que “a admissão pelo juízo competente do processamento da recuperação judicial em consolidação processual (litisconsórcio ativo) não acarreta automática aceitação da consolidação substancial.”[1], justificando a excepcionalidade da prática, por atingir gravemente a tutela da personalidade jurídica e a separação patrimonial.
A Lei 14.112/2020 inseriu o artigo 69-J na LRF, o qual admitiu a possibilidade de o juiz autorizar a consolidação substancial, de forma excepcional, desde que exista uma consolidação processual do pedido de recuperação judicial adicionada a uma interconexão e confusão entre ativos e passivos dos devedores, de modo que não seja possível a identificação de sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou de recursos, o que é comum nos casos de grupo econômico de fato.
O referido artigo ainda exige, cumulativamente, a existência de, no mínimo, duas hipóteses adicionais de identidade econômica entre os requerentes, quais sejam: (i) existência de garantias cruzadas; (ii) relação de controle ou de dependência; (iii) identidade total ou parcial do quadro societário; e, (iv) atuação conjunta no mercado entre os postulantes.
Nos parecem redundantes os requisitos da relação de controle e identidade total ou parcial do quadro societário, pois a consolidação processual já exige que as sociedades estejam sob o controle comum, o que pressupõe uma identidade entre os sócios.
Como corolário da reunião dos ativos e passivos dos devedores, o plano de recuperação a ser apresentado é único e a sua rejeição provoca a convolação em falência de todos os devedores sob consolidação substancial.
A medida também implica na imediata extinção das garantias fidejussórias e dos créditos detidos por um devedor em relação ao outro. E, quanto aos credores com garantia real, salvo expressa aprovação do titular, não acarreta a supressão de sua preferência.
A consolidação substancial, embora reconhecida pela jurisprudência antes da reforma da LRF, era realizada sem critérios pré-definidos, o que gerava grande insegurança jurídica e falta de previsibilidade ao jurisdicionado.
Contudo, mesmo com a inclusão do art. 69-J à LRF, permanecem as dúvidas acerca da possibilidade de a consolidação substancial ser objeto de deliberação pelos credores em Assembleia ou se esta deverá ser deferida unicamente pelo Juízo, quando presentes os requisitos legais.
Essa polaridade já era observada na jurisprudência antes da reforma da lei, conforme se constata em breve análise do tema nas decisões dos Tribunais de Justiça do Rio de Janeiro e São Paulo.
Na jurisprudência do TJRJ, verifica-se a existência de ambos os posicionamentos. A título de exemplo, nas recuperações judiciais do Grupo OSX[2] e Grupo Oi[3], entendeu-se que os credores deveriam ser previamente consultados, conforme a conveniência financeira desta unificação.
Por outro lado, nas recuperações judiciais da Eneva[4] e Abengoa[5], a consolidação substancial foi deferida sem passar pelo crivo dos credores, considerando a existência de grupo econômico e a inexistência de prejuízo aos credores com a unificação dos planos.
Da mesma forma, também são múltiplas as interpretações no TJSP. Nas recuperações judiciais dos Grupos OAS[6], Schahin[7] e Rede Energia[8], os Juízos, diante da interdependência das empresas envolvidas, determinaram autonomamente a consolidação e ordenaram a apresentação de um plano único, entendendo ser essa medida benéfica às recuperandas.
Já na recuperação judicial do Grupo Odebrecht, determinou-se a deliberação dos credores, em Assembleia, sobre a consolidação dos planos, desde que fosse respeitada a autonomia de cada uma das recuperandas na votação, nos termos do art. 45 da LRF[9].
Dessa forma, a regulamentação objetiva prevista na Lei nº 14.112/2020 é positiva, pois estabelece os requisitos que devem ser observados pelo juiz para o deferimento da consolidação substancial. Resta saber qual será a posição adotada pela jurisprudência, se permitindo que a decisão seja tomada única e exclusivamente pelo juiz, ou se a deliberação depende da submissão ao crivo da Assembleia Geral de Credores.
[1] III Jornada de Direito Comercial – Conselho da Justiça Federal. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-de-direito-comercial/enunciados-aprovados-iii-jdc-revisados-2.pdf>. Acesso em 02 de março de 2021. [2] TJR, AI nº 0043183-31.2014.8.19.0000, 14ª Câmara Cível, rel. des. Gilberto Campista Guarino, j. em 08.10.2014. [3] TJRJ, AI nº 0052769-87.2017.8.19.0000, 8ª Câmara Cível, rel. des. Mônica Maria Costa, j. 19.12.2017. [4] TJRJ, AI nº 0003950-90.2015.8.19.0000, 22ª Câmara Cível, rel. des. Carlos Eduardo Moreira da Silva, j. em 25.03.2015. [5] TJRJ, AI nº 0014816-26.2016.8.19.0000, 22ª Câmara Cível, rel. des. Carlos Santos de Oliveira, j. em 28.07.2016.
[6] TJSP, 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais, Processo nº 1030812-77.2015.8.26.0100.
[7] TJSP, 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais, Processo nº 1037133-31.2015.8.26.0100. [8] TJSP, 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais, Processo nº 0067341-20.2012.8.26.0100. [9] TJSP, AI nº 2262371-21.2019.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. des. Alexandre Lazzarini, j. 29.11.2019.
Julia de Baére C. d’Albuquerqueé advogada no Wald, Antunes, Vita, Longo e Blattner Advogados e mestranda pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).
Gabriela de Barros Sales é advogada no Wald, Antunes, Vita, Longo e Blattner Advogados e pós-graduada em Arbitragem Comercial e Métodos Consensuais de Soluções de Conflitos pela PUC/RJ.
Alexandra Frigotto é advogada e possui LLM em International Business Regulation, Litigation and Arbitration pela New York University School of Law (EUA, 2014).
Ana Luisa Fernandes Pereira de Oliveira é advogada, conselheira seccional e vice-presidente da Comissão de Advocacia nos Tribunais Superiores da OAB/DF.
Publicado no JOTA.