23 April, 2021 - Articles Licitação tem gênero? As regras da nova lei

Por Clarissa Marcondes Macéa e Maria Augusta Rost

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Nova Lei de Licitações traz duas inovações no que se refere à pauta de gênero

A Nova Lei de Licitações incorpora, de forma transversal, preocupações que vão além do escopo tradicional das contratações públicas. O combate à violência doméstica e a promoção da equidade de gênero mereceram particular atenção no novo diploma legal. Deferências aos temas mencionados, em norma de referência do Direito Administrativo, são importantes sinalizações. Estamos no caminho certo.

A Lei nº 14.133 de 1º de abril de 2021 manteve o objetivo maior de assegurar a seleção da proposta mais vantajosa com a finalidade de garantir a melhor contratação possível para a Administração Pública. As diretrizes da sustentabilidade, da isonomia e da competição também foram replicadas da Lei nº 8.666/1993, e agora acompanham novidades como os propósitos de inovação e coibição do sobrepreço, dos preços inexequíveis e do superfaturamento.

Ademais, entre os muitos princípios[1] previstos para reger as licitações e os contratos, destaca-se no novo texto legal o novel princípio do planejamento e da segregação das funções próprias da atividade administrativa.

A nova lei é ainda permeada por feixes de valores que deverão ser considerados pelos agentes públicos encarregados dos certames e pela gestão dos contratos, bem como pelos agentes da iniciativa privada interessados em contratar com o Poder Público. Trata-se do estímulo à inovação, às startups, às microempresas e empresas de pequeno porte, à proteção do meio ambiente e da saúde, à promoção da inclusão social, do pleno emprego, da ressocialização, da equidade de gênero e do combate à violência doméstica.

É certo que as normas possuem objetivos imediatos e mediatos, esses últimos, em regra, voltados à realização de políticas públicas condicionadas ao momento em que vivemos. Cuidaremos no presente artigo de duas inovações da nova lei no que se refere à pauta de gênero, indicativas de ações públicas voltadas à realização da igualdade entre homens e mulheres.

A primeira delas foi positivada no art. 25, § 9º, inc. I. A lei dispõe que o edital da licitação poderá, na forma disposta em regulamento, exigir que percentual mínimo da mão-de-obra responsável pela execução do objeto da contratação seja constituído por mulheres vítimas de violência doméstica[2]. Prestigia-se, portanto, a política pública de inserção dessas mulheres no mercado de trabalho para que possam ter independência financeira e assim quebrar o ciclo de convivência e dependência com o agressor, em muitos casos, o provedor.

O dispositivo foi inserido na norma a partir de um exemplo de ação efetiva, executada no âmbito do Senado Federal, por iniciativa de sua Diretora-Geral, Ilana Trombka. Em 2016, foi instituído na referida Casa Legislativa o Programa de Assistência a Mulheres em situação de vulnerabilidade econômica em decorrente de violência doméstica. Pelo Programa, o Senado Federal celebraria acordo de cooperação com entidade pública responsável pela política pública de atenção a mulheres vítimas de violência. Essa entidade seria responsável pela elaboração de relação nominal das mulheres que atendem aos requisitos profissionais necessários para o exercício de atividade terceirizada.

Em abril de 2017, o Senado Federal firmou acordo de cooperação técnica com o Governo do Distrito Federal para assegurar a implementação do programa. Diante disso, os editais de serviços com alocação de mão de obra do Senado Federal têm consignado a exigência da reserva de no mínimo 2% das vagas do contrato para mulheres em situação de vulnerabilidade econômica decorrente de violência doméstica e familiar, atendida a qualificação profissional mínima necessária.

As trabalhadoras contratadas têm suas identidades mantidas em sigilo por razões de segurança e, evidentemente, é vedada qualquer discriminação no exercício de suas funções. Na prática, a empresa contratada seleciona as candidatas do rol apresentado pelo Governo do Distrito Federal com o intuito de atender ao quantitativo previsto no edital. Além disso, deverá manter o cumprimento da exigência até o término do contrato. As regras do programa também se aplicam aos casos de contratações diretas.

Esse registro é relevante não apenas para demonstrar a viabilidade da inserção de políticas públicas sociais nas normas de contratação pública, com baixo custo, mas especialmente para incentivar que outros órgãos da Administração venham a adotar esse modelo, agora chancelado pela nova lei de licitações, a partir de demanda da bancada feminina da Câmara dos Deputados.

Outra novidade do novo texto legal em matéria de gênero foi incorporada no art. 60, que disciplina, entre as normas de julgamento das propostas, no caso de empate, quatro critérios de desempate, os quais devem ser observados de acordo com a ordem prevista na lei.

Como primeiro critério de desempate, a lei prevê uma disputa final, hipótese em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta em ato contínuo à classificação. Como segundo critério, foi prevista a avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, a partir preferencialmente de registros cadastrais para efeito de atesto do cumprimento de obrigações previstas na lei. Como terceiro critério, merecedor aqui de nossa atenção, a nova lei estabelece como medida de desempate o desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, conforme regulamento. E por fim, como quarto e último critério, foi arrolado o desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, de acordo com orientações dos órgãos de controle.

A ideia de prestigiar, como critério de desempate, ações voltadas ao combate à desigualdade de gênero já vinha sendo objeto de debate no Congresso Nacional à luz da antiga lei de licitações. O texto atual prevê a necessidade de regulamentação do tema. Ou seja, será necessário identificar como aferir, de forma objetiva, que o licitante desenvolve ações de equidade de gênero no ambiente de trabalho.

O Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça, inaugurado pelo Governo Federal em 2005, pode oferecer balizas nesse sentido. Ele já contou com seis edições, estando a última ainda em aberto. O Programa confere um selo de certificação para organizações que promovem a igualdade de gênero e raça em seu ambiente institucional.

As ações de equidade são estruturadas a partir de dois eixos. O primeiro deles, o eixo de gestão de pessoas, cuida de temas como recrutamento e seleção, capacitação e treinamento, ascensão funcional e plano de cargos e carreira, levando em conta salário e remuneração. O segundo, o eixo de cultura organizacional, tem por objetivo, entre outros, o estabelecimento de mecanismos de combate a práticas de desigualdade e discriminações de gênero e de combate à ocorrência de assédios moral e sexual.

Ao longo de suas edições, aderiram ao Programa instituições como o BNDES, a Fiocruz, o Senado Federal, a Câmara dos Deputados, o Banco do Brasil e a Prefeitura do Município de Guarulhos.

Como exemplos de boas práticas de ações de equidade entre homens e mulheres, a serem objeto de regulamentação, podemos sugerir os seguintes: (i) criação de um local adequado para que as lactantes possam colher, armazenar o leite materno ou amamentar durante o horário de trabalho; (ii) oferta de um canal confiável para denúncias de práticas discriminatórias; (iii) investimento na capacitação de mulheres para o exercício gerencial; (iv) estímulo à ascensão a cargos gerenciais de forma equitativa entre mulheres e homens.

Vale ressaltar que essas duas novidades da nova lei de licitações estão em perfeito alinhamento com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de número 5 da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, de “acabar com a desigualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.

A Agenda 2030 foi estabelecida em 2015 pela Assembleia Geral da ONU, por consenso dos 193 estados membros, incluído o Brasil. Trata-se do principal marco internacional para o atingimento de diversas dimensões do progresso humano, cuja realização se espera na presente década.

Convém, assim, que o Poder Executivo não tarde a regulamentar os dois dispositivos muito bem-vindos no novo diploma legal, a fim de conferir efetividade às políticas públicas de combate à violência doméstica e de equidade de gênero nele previstas. Da mesma forma, é recomendável que o setor privado reforce ou implemente ações para a realização desses objetivos.


NOTAS

[1] Confira-se a redação do artigo 5º da Lei nº 14.133: “Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).”

[2] Vide a redação do artigo 25: “O edital deverá conter o objeto da licitação e as regras relativas à convocação, ao julgamento, à habilitação, aos recursos e às penalidades da licitação, à fiscalização e à gestão do contrato, à entrega do objeto e às condições de pagamento. […] § 9º O edital poderá, na forma disposta em regulamento, exigir que percentual mínimo da mão de obra responsável pela execução do objeto da contratação seja constituído por: I – mulheres vítimas de violência doméstica; […].

Clarissa Marcondes Macéa é advogada do Wald, Antunes, Vita e Blattner Advogados, graduada pela Universidade de São Paulo, Mestre em Direito (LL.M.) pela Universidade de Harvard. Foi Assessora de Ministro do Supremo Tribunal Federal e Chefe da Assessoria Jurídica da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo. É Procuradora do Município de São Paulo licenciada.

Maria Augusta Rost é advogada e consultora jurídica. Mestre em Direito do Estado pela UnB. Foi professora dos Grupos de Estudos de Comércio e Concorrência da UnB e Arbitragem Internacional do Instituto Brasileiro de Direito Público (IDP). Membro do Women’s Leadership Network Program da Universidade de Columbia. Autora de diversos artigos jurídicos e da obra “Arbitragem como política pública”.

Publicado no JOTA.

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