07 January, 2020 - Articles O ano das discussões sobre limites da revisão judicial das decisões do Cade

Por Bernardo Cavalcanti Freire

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Nos últimos anos, os Tribunais Superiores têm voltado as suas atenções para a análise da viabilidade da revisão, pelo Poder Judiciário, das decisões administrativas oriundas do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

As discussões sobre o tema também atraíram controvérsia ao longo deste ano. Com efeito, embora na última década o STJ tenha consolidado que as “decisões do Cade não fogem à regra da ampla revisão pelo Poder Judiciário, quer pelo aspecto horizontal (objeto da demanda), quer pelo vertical (profundidade da cognição), em homenagem à cláusula de inafastabilidade inserida no art. 5º, XXXV, da CF ‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’”[1], o STF voltou a debater a questão em 2019.

O caso que gerou a discussão sobre o tema foi o Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº 1.083.955/DF, de relatoria do ministro Luiz Fux, da 1ª Turma do STF.

Nesta demanda, uma empresa condenada por infração contra a ordem econômica no setor de combustíveis buscava a anulação da decisão condenatória do Cade. De acordo com a impressão de alguns juristas sobre o acórdão, a 1ª Turma do STF concluiu pela impossibilidade de reanálise do mérito das decisões técnicas do Cade.

De fato, pela leitura inicial do acórdão, os julgadores entenderam que existiria a necessidade de fixação de uma espécie de limite à atuação judicial em matéria concorrencial, tanto em razão do conhecimento especializado do Cade sobre o tema de regulação econômica bem como, conforme bem ressaltou o professor André de Carvalho Ramos, pela existência de um “dever de deferência do Poder Judiciário às decisões regulatórias”[2], decorrente da falta de expertise dos tribunais para discutir questões regulatórias que possam ensejar “efeitos sistêmicos nocivos à coerência e dinâmica regulatória administrativa”.

Por todas estas razões, destacou o acórdão que seria vedada a incursão do Poder Judiciário “sobre o mérito administrativo” da decisão do Cade. Esta é a conclusão que deve ser objeto de análise.

O exame aprofundado do acórdão faz concluir que não se pretendeu coibir toda e qualquer revisão judicial das decisões do Cade. Tanto que o próprio acórdão destacou que jamais “se afirmou a impossibilidade, sob qualquer aspecto, da revisão judicial das decisões do Cade, inclusive se abusivas ou ilegais”. Além do que, destaca-se que cabe sim “ao Poder Judiciário realizar o controle de legalidade do ato”, sendo que esse “controle jurisdicional deve cingir-se ao exame da legalidade ou abusividade dos atos administrativos”.

Nem poderia ser diferente, eis que, de fato, as decisões do Cade não fogem à regra da inafastabilidade da mais ampla apreciação pelo Judiciário. A própria Lei do Cade, nessa linha, ressalta, em seu art. 98, a possibilidade de ajuizamento de ação que vise à desconstituição da decisão do Tribunal. Qualquer limitação dessa apreciação pelo Judiciário, pois, violaria a própria Lei do Cade.

Além do que, defender tal limitação criaria um “poder” com um grau único de jurisdição, o que também viola a Carta Magna no seu art. 5º, LV. Também por essa razão é essencial a atuação ampla do Judiciário.

Nesse sentido, como reconhece a jurisprudência, deve-se buscar controlar eventuais abusos do Cade nos processos em geral. Nem poderia ser diferente, eis que nada impede que o Cade venha a cometer equívocos até mesmo na sua análise de mérito das discussões.

Não por outra razão, há recentes precedentes que anulam as condenações impostas pelo Cade, coibindo: a violação ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, a utilização de prova ilícita e apócrifa; a vedação do acesso à integralidade dos documentos apreendidos e investigados; e inclusive as condenações e penalidades que o Judiciário refuta desprovidas de fundamentação técnica e de provas.

Em primeiro lugar, há julgados reconhecendo a necessidade de garantia no âmbito do Cade do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório e “do integral acesso ao conjunto fático-probatório em que se sustenta a imputação”[3], sob pena de revisão judicial.

Raciocínio similar foi o do então juiz da 17ª da Justiça Federal do Distrito Federal, Victor Cretella, que anulou decisão do Cade por vislumbrar violação à ampla defesa e contraditório. Ressalvou que “se o Cade delimitou os fatos objeto de julgamento, mas não se ateve a tais fatos, a questão aí tem muito mais a ver com a violação dos princípios da ampla defesa e do contraditório. De fato, os autores deveriam saber exatamente de quais fatos deveriam se defender”.

Ademais, há precedente do TRF da 1ª Região que refuta as condenações baseadas em provas apócrifas, cuja autenticidade não foi comprovada. Exatamente por essa razão, declarou-se nula a decisão proferida pelo Cade no caso do suposto cartel dos laboratórios farmacêuticos, reconhecendo-se que “não ficou claramente demonstrado, pelo conteúdo da ata, se os participantes queriam efetivamente dificultar a introdução dos medicamentos genéricos no mercado ou se apenas discutiam estratégias de mercado a serem adotadas em face da nova realidade que se apresentava”[4].

De igual modo, o TRF da 2ª Região[5], ao julgar o cartel dos gases, deixou clara a importância de se adentrar no mérito das decisões do Cade para averiguar eventuais equívocos técnicos. No precedente foi ressaltado a importância da realização da prova pericial para verificar a ocorrência ou não de crime concorrencial. A conclusão foi a de que, para que seja imposta condenação por cartel, “é necessário demonstrar o nexo de causalidade entre a prática comercial fraudulenta e a ofensa aos fundamentos da ordem econômica”.

Ainda, adentrando no mérito da dosimetria das penas e reconhecendo que “cabe ao Poder Judiciário analisar a existência de fundamentação para a dosimetria da multa”, o Des. Rodrigo Navarro, do TRF da 1ª Região, determinou a redução de uma pena por entender que “a decisão do Cade não explicita a ocorrência de nenhum ato que revele a má-fé da empresa”[6].

Por fim, ressalte-se que também no direito comparado se reconhece a viabilidade da análise judicial das decisões dos órgãos concorrenciais. Com efeito, recente decisão proferida pela Corte de Apelação de Bruxelas, relacionada a um suposto cartel na indústria cimenteira, concluiu não haver provas suficientes da eventual ação concertada entre as empresas, nem motivação adequada e individualização das penas, anulando a condenação[7].

Portanto, os Tribunais Pátrios e mesmo internacionais reconhecem que devem, de fato, analisar o mérito do processo administrativo sancionador da autoridade concorrencial.

Feitos tais esclarecimentos, parece importante entender o que pretendeu a 1ª Turma: defender que há uma instância única administrativa cujo mérito de suas decisões jamais poderá ser objeto de controle jurisdicional pelo Judiciário ou estabelecer regras, critérios e limites para essa revisão judicial?

Interpretando o acórdão, vê-se que jamais se pretendeu, ali, afastar qualquer possibilidade de o Judiciário rever a decisão do Cade. Buscou-se, é certo, fixar os limites e a extensão dessa análise. Referido acórdão, no entanto, não impede o controle da atividade do Cade pelo Judiciário. Até porque seu âmbito de aplicação é bastante restrito.

O caso concreto analisado pelo acórdão não corresponde à maioria dos que são analisados pelo Judiciário: trata-se da qualificação jurídica de fatos incontroversos. Nele, os representados de um processo sancionador, confessando a realização de determinada conduta (atuação conjunta através de sindicato para impedir a entrada de novos concorrentes no mercado de combustíveis local), requereram a sua desqualificação como anticoncorrencial.

Não é o que se vê na prática forense. Geralmente se discutem a existência ou, ao menos, a interpretação de fatos dada pelo Cade: se determinado indício de prova é ou não suficiente para condenação, se certo documento tem ou não a amplitude dada pelo órgão antitruste, se um testemunho é ou não crível o suficiente, se o Cade produziu prova econômica que justificasse uma decisão condenatória, dentre outros.

O relator, em seu voto, trata apenas do “controle jurisdicional de escolhas políticas e técnicas subjacentes à regulação econômica”, escolhas essas que estão inseridas na “dinâmica regulatória administrativa”, sobre a qual o Judiciário tem atuação mais limitada. E é limitada justamente para favorecer, nas palavras da decisão, a “unidade e coerência da política regulatória”, centrada em “prognósticos de natureza técnica”.

Esse controle, na verdade, não é o que se vê nas ações contrárias às decisões do Cade. Elas não versam, em sua esmagadora maioria, sobre política regulatória concorrencial — como seria o caso, por exemplo, de anular uma norma interna do Cade que estabelece critérios mais rígidos para aprovação de atos de concentração. O que se tem são controles judiciais de condenações concretas, oriundas de processos sancionadores que, quando muito, apenas tangencialmente tratam de políticas públicas de competição.

Analisando-se o acórdão por este viés, diante de seu escopo de aplicação limitado, vê-se que ele apenas não permite que o Judiciário se imiscua na política concorrencial definida pelo Cade, como nos casos de classificar determinada conduta incontroversa como anticoncorrencial ou não. Nada impede que seja realizada uma análise do mérito de outros casos concretos em que há dúvidas sobre a própria premissa fática adotada e sobre a ocorrência ou não da conduta anticoncorrencial – que é a situação normalmente encontrada.

Nesse sentido, pois, mesmo analisando o precedente em discussão, entende-se que o mérito da decisão administrativa poderá sempre ser revisto pelo Judiciário desde que verificados os vícios que possibilitem essa revisão, apontados supra, ou o enquadramento fático equivocado do Cade. O que o Judiciário não pode fazer, pelo acórdão analisado, é entender que fatos incontroversos tidos pelo Cade como anticoncorrenciais, assim tipificados na lei, sejam reconhecidos como legítimos.

[1] REsp 1.181.643/RS, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, Segunda Turma, DJe 20/05/2011.

[2] RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos, 7ª Ed. – São Paulo: Saraiva, 2019.

[3] AC 0030258-37.2005.4.01.3400 / DF, Rel. Des. Souza Prudente, Quinta Turma, e-DJF1 de 06.05.2016.

[4] AC 0043979-85.2007.4.01.3400, Des. Kassio Marques, TRF-1, Sexta Turma, DJF 29.05.2015.

[5] REO 0013674-13.1999.4.02.5101/RJ, Rel. Des. Nizete Carmo, 6ª Turma, DJ 09.12.2014.

[6] AC 0013251-66.2004.4.01.3400 / DF, Rel. Juiz Federal Rodrigo Navarro, e-DJF1 de 08/10/2012.

[7] Corte de Apelação de Bruxelas, 18ª Câmara Cível, Recursos 2013/MR/11 a 15, j. 30.06.2016.

Bernardo Cavalcanti Freire é sócio do escritório Wald, Antunes, Vita, Longo e Blattner Advogados.

Artigo publicado no Consultor Jurídico.

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