25 novembro, 2021 - Artigos A (nova) desconsideração da personalidade jurídica na insolvência

Por Wald, Antunes, Vita e Blattner Advogados

Dispositivo ocupou lacuna importante, que vinha sendo preenchida caso a caso pelo Judiciário


Partindo-se da premissa de que a autonomia patrimonial da pessoa jurídica deve ser respeitada, o mesmo deve ser observado em situação de insolvência. O respeito a esse princípio, ensina André Cruz[1], constitui “importantíssima ferramenta jurídica de incentivo ao empreendedorismo na medida que consagra a limitação de responsabilidade – a depender do tipo de sociedade adotado – e, consequentemente, atua como importante redutor do risco empresarial.”

Com amparo nessa máxima, a Lei 14.112/2020 trouxe grande avanço ao tema em âmbito falimentar, ao introduzir dispositivos à Lei 11.101/2005 que vedam (i) a atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do mero inadimplemento das obrigações do falido (artigo 6-C)[2], e (ii) a extensão dos efeitos da falência aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e administradores, admitindo, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica da falida, desde que preenchidos os requisitos previstos no art. 50 do Código Civil (artigo 82-A).[3]

Diz-se avanço, pois a ausência de previsão específica levou à criação de jurisprudência consolidada no Superior Tribunal de Justiça (STJ) no sentido de se admitir a extensão dos efeitos da falência aos sócios, controladores ou administradores de sociedade de responsabilidade limitada, sem apurar os limites de sua responsabilidade e sem a necessidade de ajuizamento de ação autônoma, conforme prevê o art. 82 da Lei 11.101/2005.[4]

Assim, a recente reforma da Lei 11.101/2005 foi essencial para afastar essa ausência de previsibilidade na responsabilidade do sócio ou do grupo econômico que, muitas vezes, não só era responsabilizado de forma ilimitada, sem o respeito ao contraditório, como também sofria graves consequências decorrentes da decretação da falência, já que os seus efeitos lhe eram estendidos.

O art. 82-A, incluído pela Lei 14.112/2020, trouxe a segurança jurídica almejada, vedando a extensão dos efeitos da falência aos sócios, controladores e administradores e admitindo a sua responsabilização pelas dívidas da sociedade empresária falida desde que presentes os requisitos do art. 50 do CC/02 e observando-se as regras processuais do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previstas nos arts. 133 e seguintes do CPC/15.

Assim, com a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, que pode se dar de ofício pelo magistrado ou a requerimento da parte interessada, o patrimônio dos sócios pode ser alcançado para responder pelos débitos da massa falida, sem que os efeitos da falência, no entanto, lhes sejam estendidos.

O parágrafo único do mesmo art. 82-A ainda previu a competência exclusiva do Juízo Falimentar para julgar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida.

Nesse sentido, destaque-se que, em julgamento recente no CC 182689 – AL[5], o STJ aplicou o referido dispositivo legal, reconhecendo a incompetência do Juízo Trabalhista e declarando a competência exclusiva do Juízo Falimentar para processar e julgar pedido de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, ressalvando expressamente as hipóteses em que a decretação da falência se deu em momento anterior à alteração da Lei 11.101/2005 pela Lei 14.112/2020.

Vale também destacar a nova redação do art. 50 do Código Civil, alterada pela Lei 13.874/2019, que passou a exigir como requisito para a desconsideração da personalidade jurídica a prova do benefício direto ou indireto do sócio a quem se pretende atribuir a responsabilidade.

Além disso, o art. 50 do CC, em seu parágrafo 2º, passou a definir as condutas que configuram o que se chama de confusão patrimonial, como: (i) o cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (ii) a transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (iii) outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. O referido artigo, ainda, passou a estabelecer que a mera existência de grupo econômico, sem os requisitos previstos em seu caput, não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica.

No tocante ao procedimento, como visto, o parágrafo único do art. 82-A faz remissão aos arts. 133 a 137 do Código de Processo Civil, excetuando expressamente a aplicação do art. 134, §3º do mesmo diploma, que prevê a suspensão do processo principal. Assim, o processo de falência mantém seu trâmite regular, enquanto o incidente de desconsideração é processado e julgado.

Após a instauração de incidente próprio, o sócio ou a pessoa jurídica serão citados para apresentar suas manifestações e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 dias (art. 135, CPC).

Com a conclusão da instrução, o incidente é resolvido por decisão interlocutória recorrível por agravo de instrumento e, se resolvida por relator, por agravo interno (art. 136, CPC). Caso seja acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou oneração dos bens, havendo fraude à execução, será ineficaz em relação ao requerente (art. 137, CPC).

Como se vê, a inclusão do art. 82-A na Lei 11.101/2005, que vedou a extensão dos efeitos da falência aos sócios de responsabilidade limitada e previu a necessidade de observância aos requisitos do art. 50 do Código Civil e aos ritos previstos no Código de Processo Civil, teve a finalidade de assegurar maior segurança jurídica e fomento ao empreendedorismo, já que afastou as nefastas consequências da decretação da falência e assegurou o contraditório prévio através da instauração de incidente em apartado.

Conclui-se que o art. 82-A veio para complementar as previsões existentes nos arts. 81 e 82 quanto à responsabilidade dos sócios no âmbito falimentar, uma vez que, sob o regime anterior, a lei previa duas hipóteses: (i) a sujeição dos sócios de responsabilidade ilimitada aos efeitos da falência e (ii) a possibilidade de ajuizamento de ação própria, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil, para apuração da responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada.

O referido dispositivo ocupou uma lacuna importante, que vinha sendo preenchida caso a caso pelo Poder Judiciário, que coibia abusos e fraudes perpetrados por sócios de responsabilidade limitada de maneira mais célere, porém resultando em insegurança jurídica e, em algumas hipóteses, em arbitrariedades.

Portanto, tal dispositivo prestigia o princípio da autonomia patrimonial e da segurança jurídica, sobretudo ao impedir a responsabilização por mero inadimplemento, ao determinar a observância ao rito e requisitos específicos para a desconsideração da personalidade jurídica e ao vedar a extensão dos efeitos da falência ao sócio da falida.

Leia o artigo no Elas no JOTA


NOTAS

[1] CRUZ, A.S. Direito empresarial: volume único. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020

[2] Art. 6º-C da Lei 11.101/2005: “É vedada atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do mero inadimplemento de obrigações do devedor falido ou em recuperação judicial, ressalvadas as garantias reais e fidejussórias, bem como as demais hipóteses reguladas por esta Lei”.

[3] Art. 82-A da Lei 11.101/2005: “É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica”.

[4] Art. 82 da Lei 11.101/2005: “A responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil”.

[5] Disponível para consulta em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202102940350&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea

Compartilhe